PAVIE: um dos pioneiros da moderna medicina de Minas Gerais
22/06/2011 23:29
PAVIE : UM DOS PIONEIROS DA MODERNA MEDICINA
DE MINAS GERAIS
Sebastião Silva Gusmão
Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
Coordenador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais.
Trabalho do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais. Faculdade de Medicina da UFMG.
Av. Alfredo Baleia, 190. CEP 30130-100. Belo Horizonte. MG. Telefone : (031) 2397163
“It would be a mistake to assume that medical history today is a concern of historians and philologists alone and of no interest to physicians. Medical history is medicine also.” Sigerist(1)
Seguindo a velha recomendação de Littré(2) - “la science de la medicina, si elle ne veut pas être rabaissée au rang de métier, doit s’occuper de son histoire et soigner les vieux monuments que les temps passés lui ont légués” - o objetivo do presente relato é resgatar para a memória da medicina de Minas Gerais a vida e a obra de um invulgar médico, Alphonse Pavie . As circunstâncias fizeram com que, de forma inusitada, nas primeiras décadas deste século, uma pequena cidade do Vale do Jequitinhonha tivesse um atendimento de saúde do nível científico da medicina exercida na Europa na mesma época. Na primeira década deste século, na cidade de São João Batista, hoje Itamarandiba, Pavie exercia uma medicina comparável à de seu país de origem, a França, e à exercida pela elite médica de Juiz de Fora e Belo Horizonte, os dois centros médicos do Estado. Itamarandiba está localizada a 450 km de Belo Horizonte, sendo a última vereda do extremo nordeste do “Grande Sertão” de Minas Gerais. Foi fundada em 1680 pelo bandeirante Fernão Dias Pais em sua procura pela Serra das Esmeraldas (3) .
Alphonse Marie Edmond Pavie (Fig. 1) nasceu em Amiens (França) em 16 de agosto de 1868, sendo de origem nobre pelo lado paterno e, pelo materno, de origem aristocrática. O nome Pavie de sua família procede de Pompéran, um nobre militar francês, que se distinguiu na Batalha de Pávia (Pavie, em francês) , em 1525, quando salvou a vida de Francisco I , Rei da França, na guerra contra Carlos V , Rei da Espanha e Imperador do Sacro Império Romano (4) .
Sua educação inicial se faz junto ao Arcebispo Chamoine Mallet da cidade de Mont de Marsan, para onde fora enviado, em 1870, em decorrência da guerra entre a França e a Prússia, quando Amiens foi invadida. Posteriormente freqüenta o Collège de la Providance de Amiens. Com a idade de 16 anos começa a assistir a cirurgias no hospital Hôtel-Dieu de Amiens. Em 1888 matricula-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Paris, sendo seus mestres, entre outros: Chauffard, Labbé, Peyrot, Reclus e Richelot.
Em 1892, quando fazia o último ano do curso médico, apaixonou-se por uma artista de teatro. Interrompe os estudos e, de posse da fortuna herdada de seu pai, que falecera dois anos antes, a acompanha em tournée pelos países do continente americano. No Rio de Janeiro chegam ao fim a fortuna e o relacionamento amoroso. Para não comprometer a honra de seus antepassados, muda de nome, passando a se chamar Afonso Ulrik, e decide não mais retornar à França. Essa penitência era imposta pelo código de honra da nobreza francesa e pela rígida moral de sua formação.
Em 1894 dirige-se ao interior de Minas Gerais para trabalhar na construção da Estrada de Ferro Bahia e Minas, onde assume funções de médico. Terminada a obra em 1898, permanece por um ano em Teófilo Otoni e, em 1900, passa a residir na cidade de Capelinha, onde por dez anos atende vasta região, abrangendo várias cidades do nordeste mineiro. Aí, em 1903, casa-se com Maria da Conceição Guimarães. Dessa união nasceriam quinze filhos.
Em 1904, Francisco Antônio Alves, presidente do Estado de Minas Gerais, nomeia-o para o cargo de delegado vacinador e, em 1905, Rodrigues Alves, presidente da República, nomeia-o para o posto de Major Cirurgião da Terceira Brigada de Infantaria da Guarda Nacional da cidade de Minas Novas. Logo após essa data, volta a corresponder com os familiares e antigos colegas, passando a receber da França livros, revistas e material médico. Inicia numerosa correspondência e troca de experiência médica com vários médicos de Paris, especialmente com Victor Pauchet (1869-1936), um dos maiores cirurgiões da Europa . Foram colegas no Collège de la Providance, no Hôtel-Dieu de Amiens e, posteriormente, na Faculdade de Medicina em Paris. Em mais de uma carta, Victor Pauchet manifesta sua grande admiração por Pavie e lembra que foi ele quem o inspirou a seguir a profissão médica e a dedicar-se à cirurgia (Fig. 2) e insiste em seu retorno a Paris para trabalharem juntos no Hospital Saint Michel. A correspondência com Victor Pauchet foi de fundamental importância. Permitiu a Pavie, que vivia isolado como o único médico de vasta região do sertão mineiro, manter-se em dia com a medicina de ponta praticada na Europa.
Victor Pauchet, após defender sua tese na Faculdade de Medicina de Paris, em 1897, instala-se em Amiens, onde se torna professor de Anatomia e de Medicina Cirúrgica na Faculdade de Medicina e exerce grande atividade cirúrgica até 1914. Através de sua crescente produção escrita, torna-se conhecido em toda a França e no exterior, de onde vêm vários cirurgiões para visitá-lo. Em 1914 passa a dirigir um serviço de cirurgia na frente de combate, durante a Primeira Guerra Mundial. A partir de 1918, torna-se chefe do serviço de cirurgia do Hospital Saint Michel . Aí, até o ano de 1934, desenvolve rica prática em cirurgia abdominal, tornando-se mundialmente conhecido e acolhendo cirurgiões do mundo inteiro. Chefiava então a maior clínica cirúrgica de Paris e foi presidente da Société des Chirurgiens de Paris e da Société de Médecine de Paris. Deu contribuições originais à técnica cirúrgica, especialmente nas cirurgias de amputação e gastrectomia. Em 1914 idealizou a técnica de amputação denominada amputation en section plane, adotada amplamente durante a Primeira Guerra Mundial. Pelos serviços prestados foi condecorado com a Légion d’Honneur e a Croix de Guerre. Foi o introdutor e difusor na França da anestesia regional. Deixou vasta obra impressa, incluindo vários livros de anatomia, anestesia regional e cirurgia, e ainda o clássico Pratique Chirurgicale Ilustrée em 23 volumes, todos ilustrados pelo prodigioso artista S. Dupret, o mesmo que ilustrou os clássicos tratados de anatomia de Testut (5,6,7).
Em 1910 Pavie muda-se para Itamarandiba. Seu relacionamento com Victor Pauchet, outros médicos, institutos (especialmente o Instituto Pasteur de Paris) e casas de material médico possibilita a Itamarandiba receber o que existia de mais moderno na França em equipamento médico-hospitalar. Tudo isso tornou possível a existência, naquela pequena cidade, de um hospital (Fig. 3), farmácia, aparelho radiológico e laboratório de exames complementares, todos de nível técnico incomum para a medicina de Minas Gerais no início deste século. O laboratório foi instalado em 1911 com reagentes e aparelhagem de primeira ordem, escolhidos em Paris por especialistas amigos, isso numa época em que os mesmos recursos eram raríssimos no Brasil. As peças, insumos e livros importados da França eram transportados de Belo Horizonte até Itamarandiba por tropeiros, em viagens que duravam quinze dias. As máquinas mais pesadas, como mesa cirúrgica, raios X e o conjunto para a futura luz elétrica, foram levados em carro-de-boi.
Assim, em 1911, encontramos em Itamarandiba a mais avançada técnica médica da época : recursos para esterilização ( Fig. 4; nas figuras as legendas entre aspas foram feitas pelo próprio Pavie), química de sangue (Fig. 5), hematologia (Fig. 6), bacteriologia (Fig. 6 e 8) e sorologia para sífilis (Fig. 9), tifo e paratifo A e B (Fig. 10) , anatomia patológica (microscópio e micrótomo) (Fig.11) e dispositivo para fotomicrografia (Fig.12). Anexo ao laboratório, existia um biotério com cobaias, coelhos (Fig.13) e carneiros para inoculações e obtenção de hemácias de carneiro (Fig.14), soro fresco de cobaia (alexina ou complemento) (Fig.15) e anti-soro de coelho às hemácias de carneiro (Fig. 16 e 17) a serem usados na reação de Wassermann. Os extratos de antígenos para essa reação eram fornecidos trimestralmente pelo Instituto Pasteur de Paris. Em Itamarandiba era realizada a pesquisa no sangue do Plasmodium (denominado por Pavie de Laveran, o nome do médico francês que, em 1880, demonstrou no sangue a presença do agente etiológico da malária) e do Trypanosoma cruzi (Pavie denominava-o pelo nome inicialmente usado de Schizotrypan Chagas) apenas dois anos depois da sua identificação por Chagas. O prospecto de seu laboratório, em 1912, anunciava o diagnóstico etiológico ou sorológico das doenças infecciosas e parasitárias mais freqüentes na região: febre tifóide, sífilis, malária e doença de Chagas (Fig. 18). Seu laboratório foi premiado em 1922 com medalha de bronze na Feira Internacional comemorativa do Centenário da Independência do Brasil.
Em sua farmácia, com sais e embalagens importadas, fabricava soros (Fig. 19), diluições tuberculínicas e vários medicamentos em ampolas, comprimidos e cápsulas. Dispunha de vários soros do Instituto Pasteur, a preparação 606 de Ehrlich ou arsenobenzol (Salvarsan) e o composto 914 de Ehrlich, uma combinação do arsenobenzol e do formaldeído-bissulfito de sódio, denominado comercialmente Neo-salvarsan, ( ambos para o tratamento da sífilis), iodo actinífero e selenium anticâncer. Recebia de Paris o rádio, que era preparado sob a forma de pomada para aplicação em tumores superficiais (Fig. 18). Em 1912 fez vir de Paris, através de seu irmão Joseph Pavie, engenheiro exercendo o cargo de “inspecteur du mouvement aux Chemins de Fer de l’État”, um aparelho de raios-X (Fig. 20 e 21) , sendo o primeiro do Norte de Minas e um dos primeiros do Estado. Esse aparelho funcionou até 1958 e atualmente encontra-se no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (8).
Em 1911 projetou e construiu a Santa Casa de Misericórdia de Itamarandiba em cujo desenho considerou expressamente os princípios da revolução microbiológica de Pasteur9. A seguir criou a Associação das Damas da Cruz Vermelha (Fig. 22), cujas associadas receberam instrução técnica de enfermagem e passaram a dar assistência à Santa Casa (12). Assim completou o conjunto de recursos com que, através de sua excepcional capacitação, pôde prover, por longo tempo, notável atendimento à saúde de ampla faixa de população até então carente de qualquer atenção médica. Nesse aspecto ele foi, como Albert Schweitzer, precursor dos programas de tecnologia apropriada a atendimentos descentralizados, dos quais alcançaram repercussão internacional o Internato Rural e a Disciplina de Cirurgia Ambulatorial da UFMG, desde 1975.
Interessante episódio ocorreu entre Pauchet, Pavie e José Pessoa, sobrinho de Epitácio Pessoa, Presidente da República do Brasil de 1919 a 1922. Em 1920, cirurgiões brasileiros recomendaram que José Pessoa fosse operado por Victor Pauchet em Paris. Após operá-lo com êxito, este pediu ao irmão do paciente, João Pessoa (presidente do estado da Paraíba, cujo assassinato mais tarde desencadeou a revolução de 1930, sendo seu nome dado à capital do Estado da Paraíba) que, em vez do pagamento dos honorários, levasse até o interior de Minas Gerais o modelo mais moderno de mesa cirúrgica, destinado a seu grande amigo Afonso Pavie. A mesa chegou a Itamarandiba em uma padiola levada por duas mulas.
Depois de consumir grande parte de sua vida na mais alta abnegação, tratando dos pacientes pobres do nordeste de Minas e cuidando de sua numerosa família, julga-se redimido de seu “pecado da juventude” e, por insistência de seus familiares e do Arcebispo de Diamantina, volta a usar seu nome de família. Mas nunca retornou à França, apesar dos reiterados apelos de seus familiares e de Victor Pauchet.
A reconstituição da obra médica de Pavie ficou facilitada pelo grande volume de material escrito e fotográfico deixado por ele, que em 1911 dispunha de laboratório para revelação e chegava ao requinte de realizar fotomicrografias e a ensaiar fotografia em cores. Todos os procedimentos foram anotados e mais de 500 fotografias sobre sua atividade médica foram preservadas. Assim ficaram bem documentados o grau de sofisticação técnica de que dispunha e sua intensa atividade médica.
Ainda em 1911 inicia o atendimento a hansenianos. Desde o reconhecimento dos primeiros casos de lepra no Brasil, surgiu a preocupação com o isolamento dos pacientes, tendo em vista o estigma bíblico que os acompanhou até recentemente. Até o início deste século apenas duas medidas tinham sido tomadas em Minas Gerais para isolar coletivamente os leprosos. A partir de 1817, a Santa Casa de São João del-Rei manteve uma “casa para morféticos”. Em 1883 foi inaugurado o “Hospital dos Lázaros” de Sabará10. Pavie reuniu, a partir de 1911, os hansenianos de Itamarandiba e cidades vizinhas em pequenas choupanas a dois quilômetros e meio da cidade, constituindo esta, portanto, a terceira medida semelhante em Minas (Fig.23 ). Mais importante do que isolá-los, Pavie passou a tratá-los de forma científica, usando o que havia de mais atualizado na época (Fig. 24 ). Em 1911 já submetia os pacientes à biópsia da pele para pesquisa do bacilo de Hansen e à dissecção asséptica do leproma para preparar a emulsão de Gougerot (Fig. 25). Este autor propôs, em 1907, o leprolino-diagnóstico, comparável ao tuberculino-diagnóstico, que tinha por objetivo reconhecer a hanseníase em fases incipientes de sua evolução, recorrendo-se aos extratos preparados com lepromas11. Desde 1910 correspondeu com Major Roost (de Rougon), Don Santon (de Beurmam), Zambaco Pacha ( leprólogo de Constantinopla, atual Istambul, e autor da monumental obra La lèpre a travers les siècles et les Contrées), com Gougerot (professor de Dermatologia da Universidade de Paris, presidente da Commission de la lèpre au ministère des Colonies francaises e autor de vários trabalhos sobre hanseníase) e com o Leprosário de Harrar (cidade do norte da Etiópia) para colher ensinamentos. Isso numa época em que o diagnóstico e a terapêutica da hanseníase tecnicamente orientados eram inexistentes em Minas Gerais.
Sua chegada ao Brasil, conduzida por uma história de amor e desventura, sua figura aristocrática, sua vasta cultura humanística e sua competência médica tornam seu nome lendário em todo o nordeste de Minas. Doentes de várias cidades dirigem-se à pequena cidade de Itamarandiba, atraídos pela fama de Pavie e pela novidade dos procedimentos técnicos, o que a transforma em referência de saúde para a região. Todos os casos de cirurgia de urgência da região são encaminhados para Pavie, pois, como ele mesmo afirma, “o cirurgião reside num centro, a quatro dias de viagem a cavalo (125 km de caminhos acidentados e cortados por rios invadeaveis em tempo de chuvas) e mais 18 horas de percurso em estrada de ferro” (12). Logicamente que ele se referia a Borges da Costa em Belo Horizonte. A Santa Casa é ampliada progressivamente até atingir 104 leitos. Finalmente, em 1924, de forma pioneira para o nordeste de Minas, ele instala a luz elétrica na cidade, sendo todo o material importado da França.
Isolado no Sertão, quando as várias cidades da região não eram ainda ligadas ao centro por rodovia e a tropa de burros era o único meio de transporte e comunicação, consegue manter-se atualizado por meio de livros e revistas franceses e da correspondência com os colegas de Paris. Usando a anestesia local , que havia aprendido com Paul Reclus (1847 - 1914), professor de clínica cirúrgica da Faculdade de Medicina de Paris e iniciador da anestesia local por infiltração, realizava as mais variadas intervenções cirúrgicas. O próprio Pavie escreve : “Conheço a anestesia local desde o seu início. Já em 1888 Reclus gostava de nos repetir : a anestesia localizada é a anestesia do futuro” (12). Ele aprendera, portanto, a anestesia local pouco depois da introdução dessa técnica. Karl Köller , em 1884, inspirado por um trabalho de Sigmund Freud sobre a propriedade da cocaína de anestesiar as mucosas, realizou a primeira anestesia local da conjuntiva e da córnea (13,14). Em 1886, Reclus15 passa a usar a cocaína através de injeção para anestesia local ou infiltrativa (injeção de uma solução de anestésico local diretamente no tecido a ser incisado) e desde então consagrará ao desenvolvimento da anestesia local grande parte de sua vida. Em 1904 Pavie recebe amostras de cocaína de Paris e começa a usar a anestesia local que aprendera com Reclus (12).
A partir de 1912, após várias trocas de correspondência com Victor Pauchet, passa a utilizar a anestesia regional com novocaína. Apesar de Halsted ter demonstrado, em 1885, que a cocaína era capaz de bloquear a transmissão nos troncos nervosos, criando os alicerces da anestesia por bloqueio nervoso, só em 1894 a anestesia regional ou de bloqueio nervoso (injeção de uma solução de anestésico local próximo aos troncos nervosos que inervam o campo operatório) foi introduzida de fato em cirurgia13. Victor Pauchet aprendeu diretamente a anestesia local com Reclus em 1890 e a regional em 1910 com Braun, empregando a novocaína, logo após ser sintetizada por Einhorn, em 1906 (13). Victor Pauchet em 1912 publica a primeira edição do seu clássico Anesthésie Régionale16, reeditado várias vezes e traduzido para várias línguas, inclusive o Português. Assim, decorridos apenas dois anos do início da anestesia regional na França, Pavie começou a utilizá-la em Itamarandiba e em 1923 publica na revista francesa La Clinique sua esperiência cirúrgica com o uso da anestesia loco-regional, da raquianestesia e da narcose (17). Esse artigo foi favoravelmente comentado por outros cirurgiões franceses18 . Em 1931, de forma detalhada, publica na revista Publicações Médicas outro artigo, no qual relata sua grande experiência cirúrgica com o uso da anestesia loco-regional e faz ampla revisão da literatura sobre esse tipo de anestesia (12). Em 1935 é publicado na Revista de Medicina e Cirurgia seu artigo sobre intervenções na região glútea (19). Alguns de seus casos cirúrgicos, devidamente descritos e fotografados, eram enviados a Victor Pauchet e apresentados nas sessões da Société des Chirurgiens de Paris (12).
Fez vir da Europa praticamente todos os livros fundamentais da medicina do início deste século e recebia as seguintes revistas médicas: La Presse Médicale, Paris Chirurgical, La Clinique, Revue Pratique d’Obstétrique et de Gynecologie, Revue Française de Gynécologie et d’Obstétrique, Journal de Médecine e de Chirurgie Pratiques, Le Formulaire, L’Obstétrique, Archives des Maladies de l’Appareil Digestif et de la Nutrition, Lyon Chirurgical, Revue Pratique D’Obstétrique, De Gynécologie et de Pédiatrie de Paris, Bulletin de la Societé Française de Dermatologie et de Syphiligraphie, Revue de Tecnique Chirurgicale, Journal de Chirurgie, Annales de Dermatologie e de Syphiligraphie, Revista de Gynecologia e D’Obstetricia, Anais Paulista de Medicina e Cirurgia e Revista de Medicina e Cirurgia. Além da comunicação com os colegas franceses, troca correspondência com os médicos mineiros Vicente de Módena , de Varginha e posteriormente de Campinas, autor do livro Rachianestesia e editor da Revista de Medicina e Cirurgia, e Hermenegildo Rodrigues Villaça, um dos pioneiros da cirurgia em Minas Gerais e fundador da assistência hospitalar em Juiz de Fora20. Toda essa literatura e correspondência mantêm-no atualizado numa das regiões mais isoladas e pobres até hoje, o Vale do Jequitinhonha.
A partir de 1925, já possuidor de grande experiência cirúrgica, decide interromper o isolamento e visita serviços médicos de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro. Nesta última cidade, assiste a conferências e cirurgias de Álvaro Sá Rocha Faria, Pires Ferreira, Miguel Couto, Marcos Cavalcanti, Domingos de Góes e Vasconcelos, Nuno de Andrade, Alvaro Ramos, Daniel de Almeida e Augusto Brandão Filho . Em Belo Horizonte visita os serviços de Borges da Costa, no Instituto do Radium , e de Hugo Werneck, na Santa Casa. Torna-se grande amigo de Juscelino Kubitschek na época em que este era Deputado Federal e Prefeito de Belo Horizonte. O futuro presidente se referia a Pavie como médico altamente conceituado e a quem me ligo por profunda amizade . No Rio de Janeiro, onde os grandes cirurgiões em visita a Victor Pauchet em Paris já tinham notícia de sua obra médica, é recebido não como um médico do interior, mas como um grande cirurgião. É convidado e participa com esses mestres de procedimentos cirúrgicos. Suas atividades e impressões nessas visitas são relatadas em cartas para a esposa.
A partir de 1947, o peso da idade e a deficiência visual fazem com que ele diminua progressivamente sua atividade médica, passando a direção da Santa Casa ao seu filho José Pavie, que se formara em medicina nesse mesmo ano, na UFMG. Faleceu em três de outubro de 1954.
A vida pessoal desse francês de origem nobre, ex-aluno da Universidade de Paris e que, por uma desilusão amorosa, isola-se no Norte de Minas e aí consegue criar um sofisticado centro médico, é muito interessante. Vários fatos de sua vida e aspectos de sua personalidade justificariam um estudo especial. Igual atenção merecem seus escritos médicos inéditos, preservados no Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais (8). Mas aqui nos ateremos apenas à resumida apreciação do conjunto de sua obra médica.
Para avaliar a importância de Pavie no contexto da medicina de Minas Gerais é necessário comparar a obra médica por ele realizada em Itamarandiba com aquela de Villaça (1860 - 1936) em Juiz de Fora e a de Borges da Costa (1880 - 1950) em Belo Horizonte. Esses três médicos apresentam várias características em comum. Tiveram aproximadamente a mesma formação médica no final do século passado, pois Pavie formou-se em Paris e Villaça e Borges da Costa, após terminarem o curso de medicina no Rio de Janeiro, cuja Faculdade era na época de orientação essencialmente francesa, estagiaram em Paris. Os três exerceram a cirurgia nas primeiras décadas deste século em cidades de Minas Gerais, nas quais foram simultaneamente pioneiros, iniciando a moderna cirurgia no Estado. Apesar da desproporção entre as cidades nas quais exerceram a medicina (Juiz de Fora estava em vias de ser grande centro; Belo Horizonte era a nova capital; e Itamarandiba era pequena cidade, distante e isolada ) estes três médicos dispunham, fundamentalmente, no início da segunda década deste século, das mesmas condições hospitalares. Após retornar da Europa, em 1907, Villaça consegue que se construam na Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora modernas salas de cirurgia e que se comprem material cirúrgico e aparelho de raios-X (20). A Santa Casa de Itamarandiba tinha todo o material médico-hospitalar francês (laboratórios de bioquímica, de sorologia, de bacteriologia e de anatomopatologia, biotério, farmácia, equipamento médico-cirúrgico e aparelho de raios-x). A Santa Casa de Belo Horizonte, fundada em 1901, dispunha das condições básicas para o exercício da cirurgia e, a partir de 1910, passou a contar com raios-X. Acrescente-se ainda que, no final da primeira década deste século, passaram a fazer parte do corpo clínico da Santa Casa de Belo Horizonte Ezequiel Dias, Hugo Werneck, Alfredo Balena e o próprio Borges da Costa. A esses nomes soma-se o de Cícero Ferreira, que já se encontrava em Belo Horizonte, desde 1894, sendo o primeiro médico a residir na cidade ainda em construção (21). Assim, Borges da Costa, como principal cirurgião, compunha uma equipe do mais alto nível, todos, como ele, futuros fundadores da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte e grandes mestres da medicina mineira. A diferença fundamental entre os três médicos consiste no fato de que Villaça e Borges da Costa trabalharam em grandes centros, ligados a equipes completas, ao passo que Pavie trabalhou isolado no nordeste de Minas, sem apoio imediato de outros colegas ou serviços. Assim, somente após 1925, quando Belo Horizonte já era grande centro médico e os meios de transporte se aprimoraram (em 1914 foi inaugurada a ferrovia Diamantina - Belo Horizonte e em 1936 uma rodovia de 120 Km ligou Itamarandiba a Diamantina), é que Pavie visitou Borges da Costa e Hugo Werneck, em Belo Horizonte, e os mestres destes no Rio de Janeiro.
Estes três médicos viveram a época febril de expansão da cirurgia moderna, nascida na segunda metade do século passado, em conseqüência do desenvolvimento da anatomia normal e patológica, da anestesia e da assepsia. No início deste século, a difusão dos aparelhos de raios-X e dos exames laboratoriais possibilitou a interpretação mais exata das alterações patológicas. Os cirurgiões, que já eram artistas, tornaram-se também homens de ciência, unindo a virtuosidade do ato operatório ao conhecimento da patologia.
Villaça e Borges da Costa tornaram-se grandes mestres em virtude da superior capacidade de ambos e das condições propícias em que trabalharam. Villaça iniciou, no final do século passado, a cirurgia em Juiz de Fora. Após visitar, em 1906 e 1907, serviços de cirurgia em Paris, Berlim e Viena e melhorar as condições de aparelhagem da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, passa a executar os modernos procedimentos cirúrgicos, tornando-se, na avaliação do próprio Pavie, “o heróico instaurador da cirurgia abdominal em Minas e fundador da assistência hospitalar em Juiz de Fora” (19). Em 1935, um ano antes de sua morte, funda, juntamente com Almada Horta, a Faculdade de Medicina de Juiz de Fora, sendo seu primeiro diretor. Apesar de ter criado a primeira escola cirúrgica de Minas, não publicou trabalhos20.
Borges da Costa iniciou a cirurgia em Belo Horizonte, fundou em 1922 o Instituto do Radium, primeira instituição no país dedicada ao tratamento do câncer. Apesar de sua grande obra médica, não deixou nenhuma publicação (21,22).
Já Pavie trabalhou isolado no vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do país, e permaneceu desconhecido. Para exercer sua medicina teve que construir ele próprio o hospital, importar todo o material médico-hospitar, treinar pessoas para trabalhar no hospital, no laboratório e na farmácia, e melhorar as condições da cidade, através da instalação da luz elétrica. Teve que abarcar toda a medicina, e mesmo ultrapassar os seus limites: além de ser o cirurgião, era o clínico, o obstetra, o farmacêutico, o patologista clínico e o radiologista de toda uma vasta região. Apesar de todas as limitações, praticou com sucesso os mesmos procedimentos cirúrgicos praticados por Villaça e Borges da Costa, deixando grande parte de sua atividade médica documentada em fotografias e nos relatórios anuais da Santa Casa de Itamarandiba. Publicou três artigos, dois sobre os procedimentos anestesiológicos e cirúrgicos utilizados por ele (12,17) e o terceiro sobre a hemostasia nas cirurgias da região glútea (19). No primeiro, de 1923, relata as anestesias local e regional (inclusive a raquianestesia) e a narcose com éter ou cloreto de etila usados para operar lesões traumáticas, adenóide, câncer de várias localizações (Fig. 26 a 31), amputações (Fig. 32 a 35), abdome (Fig. 36 e 37), útero, craniectomia, hemorróidas, hidrocele, hérnia, eventração, prolapso genital e apendicite . No segundo, um extenso artigo de 28 paginas, publicado em 1931, pormenoriza seu próprio caminho, desde 1904, no domínio da técnica da anestesia loco-regional e dos diferentes procedimentos cirúrgicos. Demonstra que mesmo o médico isolado no interior pode, através da atualização contínua por meio de publicações, exercer uma medicina de alto nível e, com o uso da anestesia loco-regional, executar praticamente todos os procedimentos cirúrgicos realizados na época nos grandes centros. Nesse artigo relata ainda que antes de executar os bloqueios anestésicos mais difíceis os havia “praticado in mortuis” e que “a fim de conservar a mão destra executava anastomoses intestinais e suturas vasculares, com luvas, in anima vili” (12). Se exerceu uma medicina comparável à dos dois citados mestres, foi em virtude de seus excepcionais dotes intelectuais e de vontade, que o capacitaram a superar as limitações da prática solitária em região isolada e pobre.
É surpreendente como Pavie conseguiu utilizar de forma pioneira os grandes avanços tecnológicos, quase que simultaneamente à introdução dos mesmos na Europa, em localidade tão distante de grandes centros. Assim, entre 1910 e 1912, ele montou um hospital com todos os recursos técnicos emergentes na Europa. Os raios-X foram desenvolvidos em 1895, a reação de Wassermann em 1906 , a reação de Widal em 1896 , a anestesia local em 1884 e a novocaína em 1906 (23). Todos esses progressos já em 1911-1912 eram utilizados por Pavie no sertão mineiro. O desenvolvimento da transfusão de sangue só ocorreu após Landsteiner, em 1900, ter descoberto as isoaglutininas, estabelecendo as bases para a classificação dos grupos sangüíneos. Em 1909 Brewer e Legetti introduziram os recipientes parafinados e Hustin, em 1914, o citrato de sódio para prevenir a coagulação. Com esses aperfeiçoamentos, a transfusão tornou-se mais segura e passou a ser comum nos grandes centros médicos, após a experiência acumulada durante a Primeira Guerra Mundial (23). A partir de 1916 Pavie importa frascos parafinados e passa a fazer transfusões. Em 1898 Marie e Pierre Curie revelaram a existência de um novo elemento, o Rádio, que produzia radioatividade. Experiências em animais, feitas por Pierre Curie, juntamente com os professores Bouchard e Balthazard, demonstraram que o Rádio atua nos tecidos e destrói mais facilmente as células patológicas do que as normais, criando-se as bases da Curieterapia. Em 1904 Armet de Lisle, um industrial francês, funda uma usina produtora de Rádio para uso em medicina (24). Em 1912 Pavie fazia uso do Rádio no interior de Minas. Assim, no começo da segunda década deste século, Pavie dispunha, em pleno sertão mineiro, das duas maiores descobertas do final do século passado, os raios-X e o Rádio.
Ele acompanhava também o que ocorria na medicina brasileira. Carlos Chagas comunicou, em 1910, à Academia Nacional de Medicina, a descoberta feita em 1909 da doença que leva seu nome e de seu agente causador (10). Em 1912, Pavie já incluía na rotina de seu laboratório a pesquisa do protozoário (Fig.18), possibilitando o diagnóstico de uma doença endêmica da região e recém-descoberta.
Da mesma forma ele tratava seus pacientes com a ultimas novidades terapêuticas descobertas na Europa. Em 1909, Ehrlich introduziu o tratamento arsenical da sífilis, sendo este o primeiro tratamento específico dessa doença e que foi usado até a década de 40, quando foi substituído pela penicilina. Em 1912, Pavie já fazia uso dos compostos 606 (Salvarsan) e 914 de Ehrlich (Neo-salvarsan). Em 1918 Delbet, professor de cirurgia da Universidade de Paris introduziu uma “vacina mista constituída por estafilococos, estreptococos e bacilos piociânicos”, que posteriormente foi comercializada na Europa e no Brasil sob o nome de Propidon e usada até a década de 30 para tratamento de processos infecciosos. Em 1919, Pavie fazia uso desse preparado, que lhe foi enviado do Serviço do professor Delbet, antes de sua comercialização (12).
Seria interessante imaginar a trajetória de Pavie caso tivesse exercido sua profissão em um grande centro. A resposta a tal suposição é dada pelo próprio Victor Pauchet : “Eu não me esqueço de que você foi meu primeiro mestre. Eu estava com 14 ou 15 anos quando você me relatava as operações a que assistia e isto foi a origem de minha vocação cirúrgica. Portanto, tudo que sou devo à sua iniciativa. Mas, coisa bizarra, a grande situação com que você sonhava e que merecia ter fui eu que a tive. Você vive modestamente em um lugar desértico. Você deslocou seu sucesso. Um homem com sua inteligência e capacidades deveria ter uma dúzia de assistentes em torno de si para trabalhar todos os ramos que lhe interessassem.”
Pavie sonhou ser um grande cirurgião de Paris e Victor Pauchet, que se tornou esse grande cirurgião, insistentemente cobrou de seu “primeiro mestre” o retorno para ocupar o lugar que merecia. Tornou-se um grande médico e benfeitor no interior de Minas Gerais. Juntamente com Villaça e Borges da Costa, iniciou a moderna cirurgia em Minas Gerais e foi um pioneiro da moderna medicina no Estado. Nunca esqueceu a França, mas tornou-se um amante do Brasil e, em especial, do sertão mineiro, onde viveu 60 de seus 86 anos. Na correspondência com outros colegas do país referia-se a si mesmo como um sertanejo. Um sertanejo egresso da nobreza francesa. Afinal, no dizer de outro médico sertanejo, “o sertão é do tamanho do mundo.” (25)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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13- Bobbio A. História sinóptica da anestesia. São Paulo. 1969: 158.
14- Freud S. De la cocaïne (Ecrits réunis par Robert Byck). Bruxelles: Éditions Complexe. 1976 : 350
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18- Jeanneney. Journ. de Méd. Bordeaux, octobre 1923.
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24- Curie E. Madame Curie. Trad. Monteiro Lobato. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1938: 337
25- Guimarães Rosa, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. 1956: 460