Oswaldo Gonçalves Cruz

22/06/2011 21:28

 

Dr. Oswaldo Cruz

 

 

Todo brasileiro entra em contato com a figura de Oswaldo Cruz já no colégio. Em algum momento, o livro de História do Brasil mencionará o grande sanitarista que saneou o Rio de Janeiro no início do século. Mesmo que não freqüente a escola, porém, o brasileiro inevitavelmente ouvirá o nome. Rua Oswaldo Cruz, Praça Oswaldo Cruz, Edifício Oswaldo Cruz, Laboratório Oswaldo Cruz. E muitos terão visto o elegante, e surpreendente, prédio em estilo mourisco que, no Rio de Janeiro, sedia a Fundação Oswaldo Cruz.  
Médico de saúde pública, eu estava um pouco mais informado a respeito do que a média das pessoas. Eventualmente Oswaldo Cruz era mencionado numa conversa entre colegas, evocando febre amarela, ou varíola, ou peste. Mesmo nessas situações, porém, os comentários não iam além do sumário. Afinal, quase oitenta anos se passaram depois da morte de Oswaldo, e este é um tempo demasiado longo num país de escassa memória como é o Brasil.  
Um dia recebi um telefonema do editor Luiz Schwarcz. Não estava eu interessado em escrever um texto ficcional sobre algum personagem histórico? Ele tinha um nome a me propor: Oswaldo Cruz. 
Eu nunca tinha pensado a respeito, situação que obrigatoriamente coloca um escritor de sobreaviso. Uma idéia deve nos ocorrer espontaneamente, e mais, ela deve nos perseguir dia e noite até que, exaustos, não tenhamos outro remédio senão desenvolvê-la no papel. Ora, a imagem que eu tinha de Oswaldo estava longe de ser perseguidora; eu pensava nele como um cientista e sanitarista – competente sim, controverso, também, mas, no fundo, convencional.  
Não precisei passar mais do que alguns dias na Casa de Oswaldo Cruz e na Biblioteca Nacional, para – empolgado – descobrir que eu estava totalmente errado. Tudo o que eu lia, livros, artigos, documentos, tudo o que eu via, fotos, gravuras, tudo isso apontava para uma trajetória incomum, reveladora não só do homem Oswaldo Cruz como, sobretudo, do Brasil. Enchi cadernos e mais cadernos de anotações, escrevendo tão depressa que às vezes não conseguia entender minha letra (em parte, também, porque se trata de letra de médico). Oswaldo era muito mais que um cientista ou um sanitarista, era um daqueles personagens originais que marcaram o país na entrada deste crucial século XX, junto com Santos Dumont, Lima Barreto, Euclides da Cunha. Um brasileiro extraordinário. Como se verá, espero, nas páginas que seguem.
Por que Oswaldo Cruz?
            O episódio figura em mais de uma biografia, sem exata menção do lugar ou do ano. Pode ter acontecido na pequena e antiga cidade paulista de São Luís do Paraitinga, à margem do Rio Paraitinga – ali nasceu Oswaldo Gonçalves Cruz, a 5 de agosto de 1872. Ou pode ter sido no Rio de Janeiro, para onde o pai, médico, transferiu-se cinco anos depois. Não importa. O que importa é o incidente, ou mesmo a versão dele.  
Oswaldo é aluno do curso primário; menino, portanto, menino pequeno. Lá está, na aula, ouvindo atento as explicações da professora e escrevendo em seu caderno. Batem à porta. As crianças erguem as cabeças, surpresas. Quem será? Quem ousará interromper a aula? Entre, diz o professor (ou a professora? Como foi dito, não vem ao caso). A porta se abre. É o servente. Pede licença, entra, cochicha algo ao ouvido do mestre. Ele ouve, cenho franzido; depois, volta-se para a classe:  
- Aluno Oswaldo, por favor. 
Assustado, ele se aproxima. Em voz baixa, o professor transmite-lhe um recado: deve retornar à casa sem demora.  
Retornar à casa? O que terá acontecido? Estava a mãe doente? Terá o pai se acidentado? Podemos imaginar a ansiedade do garoto, correndo pelas ruas, olhos esbugalhados, o coração batendo doidamente. Finalmente chega à casa. Abre a porta, entra precipitadamente.  
Ali está o pai, a mirá-lo, severo. Não, não foi por doença ou acidente que o chamaram. Foi por outra razão, não menos séria aos olhos do genitor.  
Oswaldo deixou a cama desarrumada.  
O pai não tolera que a cama dela fique desarrumada. Dormir numa cama inevitavelmente desarruma-a; mas, tão logo canta o galo, tão logo raia, sangüinea e fresca, a madrugada, deve, aquele que dorme, pôr-se de pé num salto, e antes de mais nada, antes mesmo de alimentar-se, ou de se vestir ou de sair para o colégio, arrumar a sua cama. E Oswaldo não fez isto. Por esquecimento ou por preguiça ou – pior – por desobediência, saiu de casa deixando atrás de si a marca de uma transgressão, pequena, mas transgressão: cama desarrumada.  
Em silêncio. Oswaldo corrige a sua falta. Arruma a cama. Com o que o pai dá-se por satisfeito.  
É um disciplinador, o doutor Bento Gonçalves Cruz. E a sua história é a história de um triunfo da disciplina, do árduo trabalho.  
Filho de um negociante da rua do Senado, no Rio de Janeiro, muito cedo perde os pais. Ele e a irmã Emília são criados por um tio. Esse homem tem a má sorte de perder, em desastrados negócios, os oitenta contos que eram a herança dos dois jovens. Orfandade, primeiro; pobreza depois. Apesar da adversidade, Bento dedica-se aos estudos e consegue, com grande sacrifício, entrar na Faculdade Nacional de Medicina, na Praia Vermelha. Não terminarão aí, contudo, os sobressaltos.  
Sobrevém a guerra. O Brasil de Pedro II, aliado à Argentina e ao Uruguai, enfrenta o Paraguai de Solano López. Inimigo terrivel, este ditador. Animam-no os sonhos de grandeza que a amante, a misteriosa Elisa Lynch, lhe sussurra ao ouvido; de outra parte, é herdeiro das aspirações hegemônicas  e modernizantes daquele déspota esclarecido, José Gaspar Francia, El Supremo. Fechado ao mundo, o Paraguai modernizou a agricultura, desenvolveu a indústria, tornou-se uma potência na sonolenta América Latina, uma potência que os países vizinhos, o Brasil inclusive, temem. Esta potência tem, contudo, um calcanhar-de-aquiles: distante do mar, precisa escoar seus produtos pelo Uruguai. Uma intervenção brasileira na política uruguaia desencadeia o conflito. A luta será longa e sangrenta.  
No Brasil, voluntários – os Voluntários da Pátria, que darão o nome à rua em que Oswaldo residirá na fase mais tensa de sua vida – são convocados. Bento, estudante de medicina, oferece seus serviços. O imperador nomeia-o “aluno pensionista em operações contra o governo do Paraguai”. Ele deve partir ...  
Chega o dia do embarque. Em casa, a irmã, os parentes agarram-se a ele, imploram que não vá. Por que tem ele, tão jovem, de ir à guerra? Mas é à guerra que Bento Gonçalves Cruz quer ir, quer cumprir o seu dever. Consegue se desvencilhar dos braços que o prendem, corre para o cais – mas o navio que o levaria acabou de levantar ferros, afasta-se lentamente da terra. Bento Gonçalves Cruz não hesita: há um escaler ali, ele salta para dentro, pede aos homens que o conduzam até a nau do seu destino. O capitão manda parar as máquinas, o jovem é içado para bordo, entre palmas entusiastas.  
Condecorado. Bento volta ao Brasil, retoma o curso de medicina. Gradua-se, defende tese, recebendo o grau de doutor. E, como muitos jovens médicos, vai clinicar no interior – em São Luís do Paraitinga. Volta do Rio para casar-se com a prima, Amália Taborda de Bulhões. Esta mulher culta, que lê os românticos franceses e Dante (em italiano), será a primeira professora de Oswaldo, o primogênito, nascido na chácara do Dizimeiro; terá ainda cinco filhas, uma falecida em criança. A família reside num antigo casarão colonial, na parte alta de São Luís do Paraitinga. 
É um disciplinador, o doutor Bento. Mas é coerente. Mais tarde surpreenderá Oswaldo, já adolescente, fumando e o advertirá contra os inconvenientes do tabaco. “Mas papai também não fuma?”, retrucará Oswaldo, e nesse momento ele deixará os charutos e o cachimbo de que tanto gosta.  
Disciplina e coerência. Disciplina, coerência e também sonhos: a matéria de que é feito o cientista. 
Como muitos profissionais, o doutor Bento deixa o interior pela metrópole. Muda-se com toda a família para o Rio, que, apesar de sediar a capital federal, é ainda uma pequena cidade. Moram numa casa do tranqüilo Jardim Botânico. Bento é médico da Fábrica de Tecidos Corcovado, no mesmo bairro. À tarde, atende no consultório particular.  
Oswaldo cresce, torna-se adolescente, freqüenta bons colégios, apaixona-se por Emília, filha do comendador Manuel José da Fonseca. Emília: o mesmo nome da tia, um nome muito parecido ao da mãe, Amália.  
Pela namorada, Oswaldo faz coisas ousadas. Certa vez estão ambos no bonde, sentados atrás de uma senhora que usa, como é moda à época, um longo vestido. Uma idéia ocorre a Oswaldo. Pergunta se Emília tem uma tesoura. Sim, ela tem – e com a tesoura Oswaldo corta um pedaço do vestido da pobre mulher. Um troféu, que ele mostra triunfante à namorada Emília.  
Mas pelo qual pagará. Informado do incidente, o doutor Bento obriga-o a ir à casa da senhora. De lá ele volta com o vestido, que a mãe costura. A transgressão vale-lhe uma humilhação. E de novo o disciplinador pai lhe dá uma lição. A lição que anos depois será repetida nas “Últimas Vontades”, o testamento moral do doutor Bento Gonçalves Cruz: “A meus filhos peço que não se afastem do caminho da honra, do trabalho e do dever, e que empunhem como fanal e elevem bem alto o nome puro e honrado e imaculado que herdei como o melhor patrimônio da Família e que a eles lego como o maior bem que possuo.”  
Honra. Trabalho. Dever. Nome puro e honrado e imaculado. Não, Oswaldo não pode cortar vestidos de senhoras que andam de bonde, não pode fumar, não pode deixar a cama desarrumada. Mas a verdade é que se identifica com o pai. Como ele, será médico. E, como ele, sanitarista, uma carreira que, no caso do dr. Bento, durará apenas seis anos: em 1886 é nomeado (sua passada colaboração com o Império, na guerra do Paraguai, pode ter ajudado nisto) membro da Junta Central de Higiene Pública; em 1890 torna-se ajudante de inspetor-geral de Higiene e em 1892, ano de sua morte, é guindado para o cargo de inspetor-geral. Oswaldo irá mais longe.  
Na Faculdade de Medicina, não é, contudo, um aluno brilhante; Clementino Fraga, amigo, biógrafo, professor de medicina, rotula de “medíocre” o curso que faz. Tímido, quieto, passa despercebido, e chega até a cometer gafes: no exame de química diz que o clorofórmio – o anestésico que então fazia sucesso – era administrado por via oral, não por inalação.  
Mais animador é o “Registro clínico” que figura na coletânea de seus trabalhos, Opera omnia, e que se intitula “Um caso de bocio exophtalmico em indivíduo do sexo masculino”. Neste estudo acadêmico, é interessante a hipótese levantada por Oswaldo para explicar o hipertireoidismo do paciente, um marinheiro sueco. Tudo começa com um incidente: “Estando a embarcação da qual elle é marinheiro ancorada nas Índias Orientaes o nosso doente foi um dia banhar-se no mar, quando estava um tanto afastado da praia, para ele dirigiu-se um destes grandes molluscos octopodes de braços guarnecidos de ventosas (naturalmente o polvo) e agarrando-se ao seu thorax por um dos braços feriu-o, facto que, como é natural, causou-lhe um susto muito grande... Desde que se deu este accidente o nosso marinheiro, até então homem forte e sadio, como sóe acontecer geralmente aos indivíduos de sua profissão, foi-se tornando fraco, magro, tendo repetidas palpitações do coração... Parece-nos que o factor da moléstia foi uma causa de ordem moral; um grande susto, o que é, na realidade, um dos fatores etiológicos apontados para esta moléstia,”. 
Oswaldo partilha o gosto do inusitado que é tão comum entre estudantes de medicina. Mas a clínica também não o atrai; encontra sua vocação trabalhando no laboratório de bacteriologia da cadeira de Higiene. Faz um curso “apressado” (Clementino Fraga), em quatro anos, em vez dos seis habituais. “... Como o nauta no meio das tempestades que desencadeiamse tremendas nos oceanos anseia pelo porto desejado; como o viandante, com as plantas rasgadas pelas urzes das estradas percorridas, suspira pelo termo de sua jornada, assim desejamos alcançar o ponto a que chegamos: ao termo da vida acadêmica. “Este pomposo desabafo encerra sua tese de doutoramento A Veiculação Microbiana pela Água. Que, em contraste com o trecho antes citado, começa com uma lírica declaração de amor pela microbiologia: “Desde o primeiro dia em que nos foi facultado admirar o panorama encantador que se divisa quando se colloca os olhos na ocular dum microscópio, sobre cuja platina está uma preparação; desde que vimos com o auxílio desse instrumento maravilhoso os numerosos seres vivos que povoam uma gotta d’água; desde que aprendemos a lidar, a manejar com o microscópio, enraizou-se em nosso espírito a idéia de que os nossos esforços intellectuaes d’ora em diante convergiriam para que nos instruissemos, nos especialisassemos numa sciencia que se apoiasse na microscopia.”  
No final da tese, uma série de proposições que são, supõe-se, a suma dos conhecimentos adquiridos pelo aluno Oswaldo durante o curso. Trata-se de uma desanimadora coleção de truísmos, mas, de novo: o microscópio e a microbiologia são repetidamente mencionados. A respeito de Physica Medica: É na microscopia que se baseia a microbiologia”. Em Botanica e Zoologia Medicas: “Os fermens microscopicos vivos encontrados nas águas pertencem aos generos animal e vegetal. “Em Chimica Organica e Biologica: “É a Pasteur que pertence a gloria de ter mostrado a realidade da theoria vitalista das fermentações.” Em Pharmacologia e Arte de Formular: “Dá-se o nome de vinho ao producto da fermentação alcoólica do succo de alguns vegetaes. (...) O agente productor d’esta fermentação é o Saccharomyces cerevisiae (levedo de  cerveja), descoberto por Pasteur.” Em Pathologia Cirurgica: “A gangrena gasosa é produzida por um micróbio que é o vibria septico, descoberto por Pasteur, nas águas do Sena. “Em Pathologia Medica: “A febre typhoide é uma molestia de longa duração.” 
 Obviedades e má literatura à parte, esses textos mostram a paixão do jovem doutor pela microbiologia. Que é a paixão de sua época.  
As últimas décadas do século XIX viram uma mudança radical na medicina: a revolução pasteuriana, que fornecia a chave para o entendimento – e para a prevenção – daquela velha companheira do ser humano, a doença infecciosa. Velha companheira, sim: a lepra é mencionada na Bíblia, a peste em textos gregos, a varíola nos manuscritos chineses. São enfermidades que matam, invalidam, fazem sofrer, mas – o que as causa? Para a bíblia, trata-se de maldição