Luigi Bogliolo

22/06/2011 16:45
 
 
Dr.  Luigi Bogliolo
 
 
 
 
De origem italiana - mas brasileiro por adoção -, Luigi Bogliolo nasceu em 18 de abril de 1908, na ilha da Sardenha, em Sassari (40° 44’N, 8° 33’E), principal cidade da província do mesmo nome, e morreu em Belo Horizonte em 6 de setembro de 1981. Primogênito de Enrico Bogliolo, ferroviário, e Maria Ruju, graduou-se em Medicina pela Universidade de Sassari em 1930, sendo considerado o melhor aluno da turma. 
Durante o curso médico, foi monitor da Cadeira de Anatomia e Histologia (1924-1927) e da Cadeira de Anatomia Patológica (1927-1930), sob a orientação do Prof. Enrico Emilio Franco, discípulo da Escola de Morgagni, que se tornou seu grande amigo e permanente inspirador. No biênio 1930-1932, foi assistente voluntário do Instituto de Anatomia e Histologia Patológica da Universidade de Sassari, dirigido por Franco.  
No final de 1932, transferiu-se, juntamente com o mestre, para a Real Universidade Adriática Benito Mussolini, sediada em Bari, tornando-se assistente efetivo, por concurso, da Cátedra de Anatomia Patológica. Em dezembro de 1936, mais uma vez seguindo os passos de Franco, transferiu-se para a Universidade de Pisa, na qualidade de Primeiro Assistente de Anatomia e Vice-Diretor do Instituto de Anatomia e Histologia Patológica. Ali, Bogliolo e Franco ligaram-se, afetiva e profissionalmente, ao regente da Cadeira de Patologia Geral, Prof. Cesare Sacerdotti, discípulo de Camillo Golgi (Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1906) e de Giulio Bizzozero (o descobridor das plaquetas que, por sua vez, foi discípulo de Rudolf Virchow, o "pai da Patologia Celular").  
Numa demonstração do prestígio de que desfrutavam no meio universitário pisano, os três amigos - Bogliolo, Franco e Sacerdotti - eram cognominados "I tre sofi", ou seja, "Os três sábios". Em Pisa, Bogliolo obteve o título de Livre-Docente, mediante concurso realizado em 1938, e, nesse mesmo ano, casou-se com Geula Bennoun, estudante de Medicina de origem judaica, natural de Jaffa, cidade gêmea de Tel Aviv.  
Em janeiro de 1939, colhido pelas leis raciais - embora nascido na Itália, era também judeu -, Franco foi obrigado a exilar-se em Jerusalém. Em março do mesmo ano, Bogliolo foi demitido da Universidade de Pisa por sua posição antifascista agravada por sua íntima relação com o Prof. Franco e com Geula Bennoun, sendo forçado a abandonar o país natal. Depois de passar alguns meses na Bélgica, rumou, acompanhado da esposa, para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro em 5 de janeiro de 1940.  
As publicações de Bogliolo, durante sua vida acadêmica na Itália, versam sobre temas variados da Anatomia Humana, Anatomia Patológica, Medicina Legal e Patologia Experimental, destacando-se as referentes às leishmanioses (nove trabalhos publicados entre 1934 e 1937) e, em especial, as relacionadas com a produção experimental , por meio de injeções de Thorotrast , de tumores malignos (sarcoma fusocelular fasciculado e sarcoma pleomórfico) no Mus musculus, var. alba (1a nota, 1937) e no Mus norvegicus (2a nota, 1938).  
O Thorotrast (contraste radiológico à base de dióxido de tório radioativo, cuja meia-vida biológica, na espécie humana, é de 200-400 anos) foi introduzido, para uso clínico, em 1928, prestando-se, inicialmente, à realização de pielografias por via retrógrada e hepatolienografias por via endovenosa. Como era de se esperar, quase todo o dióxido de tório injetado era retido no organismo, sendo que 70% depositava-se no fígado, 20% no baço e o restante no sistema reticuloendotelial da medula óssea e nos linfonodos periportais. A partir de 1931, o Thorotrast passou a ser utilizado pelo neurocirurgião português Egas Moniz para a visibilização dos vasos intracranianos (angiografia cerebral), em substituição ao contraste iodado que utilizara até então com o mesmo objetivo. Apesar da qualidade das radiografias obtidas, a injeção extravascular acidental do contraste na virilha, na fossa cubital e no pescoço costumava provocar graves reações textrinas – os chamados thorotrastomas: em resposta à radiação alfa emitida desenvolvia-se intensa reação fibrótica, com formação de massas endurecidas que determinavam limitação funcional das áreas acometidas e comprimiam as estruturas adjacentes. Porém, a conseqüência mais grave decorrente do uso indiscriminado do Thorotrast - perfeitamente previsível a partir dos trabalhos experimentais de Bogliolo - foi o aparecimento tardio, constatado a partir de 1947, de neoplasias malignas (em especial colangiocarcinomas e hemangioendoteliossarcomas hepáticos) em centenas de pacientes que receberam, às vezes mais de 40 anos antes, o contraste radiológico com finalidade diagnóstica. Mesmo assim, o Thorotrast continuou sendo utilizado até meados da década de 50 em instituições de grande prestígio, como o Massachusetts General Hospital (de Boston), a Lahey Clinic (também de Boston) e o University of Michigan Hospital (de Ann Arbor), de modo a configurar uma das passagens mais constrangedoras da nem sempre gloriosa História da Medicina.  
No Rio de Janeiro, Bogliolo tornou-se, a partir de janeiro de 1941, Chefe do Serviço de Anatomia Patológica da Quinta Cadeira de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, dirigida pelo Prof. Heitor Annes Dias, até a morte deste, ocorrida em 1943. Durante o período em que trabalhou naquela Faculdade, Bogliolo foi um grande incentivador das Sessões Anatomoclínicas, as quais, além de seu extraordinário valor pedagógico, funcionavam, na medida em que punham a descoberto o diagnóstico correto, como um verdadeiro "controle de qualidade" do serviço médico prestado ao paciente. As autópsias dos casos apresentados eram realizadas pelo próprio Bogliolo, de modo que, uma vez discutido o quadro clínico e formuladas as hipóteses diagnósticas, cabia-lhe apresentar o laudo anatomopatológico e, mais que isso, fazer a grande síntese (epícrise), correlacionando, com grande propriedade, os achados post-mortem com aqueles observados durante a vida.  
Em 1944, Bogliolo transferiu-se para Belo Horizonte, atendendo a um convite de seu compatriota Alfredo Balena, diretor da Faculdade de Medicina da UMG (hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG ), para reger a Cadeira de Anatomia e Fisiologia Patológica. Na capital mineira, nasceriam três de seus quatro filhos (Ada, Rina e Anna Rosa), visto que o primogênito (Alexandre) nascera no Rio de Janeiro. Pelo fato de ser estrangeiro, foi obrigado, a despeito de sua titulação, a "revalidar" o diploma, submetendo-se, no período compreendido entre 1953 e 1957, a provas (práticas, escritas e orais) de todas as disciplinas dos três últimos anos do curso médico. Por conseguinte, apenas em 1958, obteve o título de Doutor em Medicina, defendendo a tese “Subsídio para o estudo anátomo-patológico da forma aguda toxêmica da esquistossomose mansônica”.  
Em 1959, após brilhante concurso, logrou atingir a Cátedra, "il fine ultimo", a ser perseguido obstinadamente - "non si volta chi a stella è fiso" -, como costumava dizer-lhe Franco, falecido em 1950, em Jerusalém.  
Em 1972, Bogliolo publicou, pela Editora Guanabara Koogan S.A., a primeira edição do livro “Patologia”, com a participação de seus assistentes e de professores de notório saber espalhados pelo país adotivo e pelo país natal; atualmente, o livro encontra-se na 5a edição (1994). Em 1978, publicou, também pela Editora Guanabara Koogan, o livro “Patologia Geral Básica (Agressão. Defesa. Adaptação.Doença.)”.  
Trabalhando na Faculdade de Medicina da UFMG até 1978, ano de sua aposentadoria compulsória, Bogliolo criou uma Escola de Anatomia Patológica que se imporia, por seu alto nível, no cenário científico do país adotivo. Seus primeiros assistentes foram Paulo Roberto Ferreira Borges (1944-1946), João Henriques de Freitas Filho (1946-1949), Nello de Moura Rangel (1948-1953), Edmundo Chapadeiro (1950-1954) e Iracema Baccarini. Contemplado com uma bolsa de estudos nos EUA, Paulo Roberto Ferreira Borges é o único a não figurar na foto aqui reproduzida, datada de 1949. Posteriormente, ou seja, a partir de 1952, vieram Washington Luiz Tafuri, Pedro Raso, Celso Pedro Tafuri, Pérsio Godoy, Alberto Nicolau Raick, José Geraldo Albernaz, Guilherme Cabral Filho, Abadio Marques Neder, Isauro Epiphaneo Pereira, Jaeder Teixeira de Siqueira, Evilázio Teubner Ferreira, Waldemar Ladosky, Aluísio Molinar, Neide Garcia de Lima, Ayrton Garcia Leão, Romeu Cardoso Guimarães, Luiz Otávio Savassi Rocha, José Eymard Homem Pittella, Alfredo José Afonso Barbosa, Eduardo Alves Bambirra e Geraldo Brasileiro Filho, além de Edison Reis Lopes, Fausto Edmundo Lima Pereira, Hipólito de Oliveira Almeida e Ademir Rocha (os quatro últimos discípulos de Edmundo Chapadeiro).  
As contribuições da Escola de Luigi Bogliolo, reconhecidas internacionalmente, versam sobre temas os mais variados no âmbito da Patologia e disciplinas afins, destacando-se aquelas ligadas às chamadas doenças tropicais, particularmente a esquistossomose mansônica, a doença de Chagas, a blastomicose sul-americana e as leishmanioses. Merecem especial atenção as contribuições do próprio Bogliolo para o conhecimento da patologia das diferentes formas anatomoclínicas da esquistossomose mansônica, na medida em que lhe foi possível, após muitos anos de estudo: * caracterizar, de modo preciso, o quadro anatômico do fígado na forma hepatesplênica, notadamente na chamada "fibrose de Symmers", a qual, no entender de alguns, deveria ser denominada "fibrose de Symmers-Bogliolo"; * deixar claros os conceitos de fibrose e cirrose, aplicáveis às hepatopatias fibrosantes - que compreendeu como ninguém -, de modo a permitir a separação do quadro anatômico do fígado na esquistossomose mansônica hepatesplênica e na leishmaniose visceral daquele observado nas cirroses hepáticas; * descrever, de forma pioneira, as alterações do hepatograma nos portadores da forma hepatesplênica da esquistossomose submetidos à esplenoportografia, alterações essas caracterizadas pela presença, ao lado da imagem mais nítida e mais densa dos ramos portais dicotômicos, de uma outra sombra, menos densa e de contornos imprecisos, correspondendo à rede vascular neoformada ao redor dos ramos dicotômicos ("sinal de Bogliolo"); * descrever, de forma minuciosa, o quadro anatômico da forma aguda toxêmica da esquistossomose mansônica, razão de ser de sua tese de doutoramento; * descrever, pela primeira vez, o quadro anatômico do fígado na fase pré-postural da helmintíase, ao estudar punções-biópsia hepáticas realizadas cerca de três semanas após o banho infectante.  
Não se pode deixar de mencionar, também, a descoberta devida a Washington Luiz Tafuri, discípulo direto de Bogliolo, enquanto trabalhava com o Prof. Herman Hager, no Instituto Max Planck (Munique), dos chamados grânulos elementares de neurossecreção das fibras nervosas amielínicas intraganglionares do plexo mientérico de Auerbach (nota prévia publicada no periódico Naturwissenschaften 46:333, 1959). Tal descoberta representou um marco histórico, capaz de deflagrar um sem-número de pesquisas correlatas, uma vez que , até então, os grânulos elementares de neurossecreção eram considerados, pelos estudiosos em geral e por Bargmann e Palay em particular, específicos e exclusivos do trato hipotálamo-hipofisário, onde foram descritos por Scharrer, Gaupp e pelo próprio Bargmann.  
A pós-graduação, tão valorizada ultimamente, já era, de certa forma, realizada por Bogliolo desde a década de 50; tratava-se, evidentemente, de uma pós-graduação lato sensu, sem regulamentação ou reconhecimento por parte das autoridades constituídas, uma espécie de "pós-graduação em espírito". Foi tão-somente em 1972 que a Coordenação de Ensino e Pesquisa da UFMG aprovou a criação do Curso de Pós-Graduação em Patologia (Mestrado e Doutorado), com três áreas de concentração: Patologia Geral, Patologia Especial Médica e Patologia Especial Odontológica. O curso foi reconhecido como "centro de excelência"(pelo CNPq) em 1973 e credenciado pelo Conselho Federal de Educação em 1978, por meio do parecer nº 7225/78. O Colegiado do Curso foi composto pelo próprio Bogliolo (coordenador) e pelos Profs. Washington Luiz Tafuri, Pedro Raso, Roberto Junqueira de Alvarenga (do Instituto de Ciências Biológicas), José Moreira dos Santos (da Faculdade de Odontologia) e Hélio de Senna Figueiredo (também da Faculdade de Odontologia).  
Bogliolo foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Patologistas, ocupando praticamente todos os cargos, incluída a presidência (biênio 1960-1962). Sua presença marcante, sua verve, seu espírito crítico e seu estilo inconfundível faziam-se sentir nos congressos promovidos pela referida Sociedade. Foi também membro da Academia Mineira de Medicina, ocupando a cadeira no 46, tendo como patrono seu amigo e colaborador José Aroeira Neves, discípulo de Ezequiel Dias.  
Embora extremamente severo e exigente, a ponto de despertar indisfarçável temor naqueles que com ele conviviam, Bogliolo deixou uma marca indelével em seus alunos e colaboradores. Afinal, uma de suas grandes paixões – senão a maior – era investir na formação do jovem ávido de conhecimento, estimulando-o a exercitar o raciocínio, a desenvolver a consciência crítica e a "aprender a aprender", como fica evidente nos versos de um poema de sua autoria, redigido a lápis, em 1981, às vésperas de sua morte, por meio do qual ele faz uma reconstituição sumária de sua vida - uma espécie de "balanço": "Pulsare ò fatto avidi cervelli di giovani e con le dita che sentivano, e con amore, con amore ò dato forma ad alcuni" ("Fiz pulsar ávidos cérebros de jovens e com os dedos que sentiam, e com amor, com amor dei forma a alguns").
  
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA  
SAVASSI-ROCHA, Luiz Otávio. Vida e Obra de Luigi Bogliolo. Belo Horizonte: Editora Gráfica da Fundação Cultural de Belo Horizonte, 1992.

 

*Luiz Otávio Savassi Rocha: Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Tal artigo foi publicado originalmente no site: https://www.medicina.ufmg.br/cememor/bogli.htm

 


 
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