Francisco Álvares da Rocha Sabino Vieira
22/06/2011 15:44
Dr. Francisco Álvares da Rocha Sabino Vieira
De nada adiantou concentrar 300 soldados na Piedade. O 3º Corpo da Artilharia de Posição, lotado no Forte de São Pedro, havia mesmo se revoltado. De quebra, a tropa do governo aderira à causa dos rebeldes, comandados pelo médico e professor Francisco Sabino Vieira. Era o mais ousado passo político da Bahia do século XIX: a Sabinada. A revolta separatista manteve, de novembro de 1837 a março de 1838, a província livre e independente do governo central. Até que tropas portuguesas dizimaram os sabinos e a sonhada República Bahiense.
Corneta do Forte de São Pedro ecoa, marcando o início da República Bahiense. São 21h e José Pedreira França, 25 anos, anda pelas ruas de uma cidade assustada. Em 6 de novembro de 1837, a vida noturna de Salvador praticamente girava em torno do porto e de sua fauna de estrangeiros, prostitutas, trapiches e botequins na cidade baixa. Na parte alta, a residencial e administrativa, o dia terminava bem cedo. Foi por isso que o rapaz, um pacato ajudante do escrivão de órfãos e morador da Barroquinha, achou muito estranho ouvir àquela hora a corneta do Forte de São Pedro. O toque de chamada ligeira, ágil e insistente, avisava com urgência a concentração militar.
Como qualquer habitante da capital da província, José tinha medo. Não era para menos. Aos 11 anos, assistira a três mil conterrâneos lutando e morrendo pela independência de Portugal. O que faziam no dia da batalha do 2 de julho ainda rendia conversa entre parentes, amigos e vizinhos. De lá para cá, José não presenciou mais nenhum momento de paz em sua cidade. Motins de negros eram os mais comuns. Só em 1828 haviam acontecido três. Porém, nenhuma revolta havia causado tanta impressão quanto a dos africanos malês, ocorrida havia dois anos, em 1835, reunindo cerca de mil escravos muçulmanos no Terreiro de Jesus. Um levante negro era a grande ameaça silenciosa, já que metade dos 65 mil habitantes de Salvador era escrava. A insatisfação e a revolta estavam estampadas nas pequenas tarefas do dia-a-dia.
A crise econômica, política e administrativa abalava o resto de confiança de pessoas como José. O comércio do açúcar, a grande riqueza do Nordeste, dava seus primeiros sinais de fraqueza. Com sua queda, derrocavam-se também os empregos, a estabilidade social e o próprio prestígio da região. Exceto o Rio de Janeiro - e talvez Minas e São Paulo -, as demais 16 províncias brasileiras ainda aguardavam os dividendos da independência: maior autonomia política e participação das massas, temas amplamente discutidos nos jornais baianos da época. De 1831 a 1837, nada menos que 60 periódicos circularam pela província. A maioria debatendo sobre o regime republicano, o federalismo e a descentralização do poder imperial como alternativas ao colapso.
Mas, para José, 1835 havia sido um ano ímpar não só pela grande revolta africana. Conflitos armados estouraram também nas províncias do Grão-Pará e do Rio Grande do Sul. Com um diferencial: nessas, as lutas eram organizadas por brasileiros. A Cabanagem e a Farroupilha, respectivamente, entraram para a história do Brasil como as primeiras respostas à frustração causada pelo 7 de setembro. "Não houve mudança. Substituímos o centralismo de Portugal pelo centralismo do Rio de Janeiro", diziam à época. Na Bahia, idéias republicanas e federalistas vinham sendo ensaiadas com freqüência em cidades do recôncavo. E Salvador vira palco principal de uma delas, em 1833, com o frustrado levante do Forte do Mar.
Tanta tensão nos mostra como a América portuguesa encontrava-se a ponto de implodir em diversas pequenas nações. Exatamente como acontecia com a América espanhola, que a cada ano perdia de si um novo país. Em 1828, o Brasil já experimentara o amargo desse remédio ao perder a província Cisplatina, que passou a ser chamada de República Oriental do Uruguai. Grão-Pará, Rio Grande do Sul e agora, ao que parece, a Bahia queriam seguir o mesmo caminho. No Maranhão arrebentara a Balaiada, em 1838, pondo ainda mais em risco o atual mapa do país.
Mas, há 166 anos, José não sabia nada disso e, apenas com medo, fugiu para casa. Decerto percorreu a distância que separa o Forte de São Pedro da Barroquinha com o coração aos pulos e os ouvidos atentos. De quando em vez, escutava um tiro e ouvia cascos de cavalos migrando para o centro. A curiosidade de José venceu o temor apenas no dia seguinte. Na manhã do dia 7 de novembro, seguiu para a Ladeira da Praça, onde as pessoas afirmavam como o 3o Corpo da Artilharia de Posição, lotado no Forte de São Pedro, havia se revoltado.
José soube também que, durante a madrugada, as autoridades quiseram sufocar o motim, concentrando 300 soldados armados na Praça da Piedade. Na hora do ataque, a tropa do governo adere à causa, aumentando a massa dos rebeldes. Ao saber da debandada, o presidente da província, Francisco de Souza Paraíso, e o comandante das armas, Pinto Garcez, abandonam a cidade e se refugiam num brigue ancorado na Baía de Todos os Santos. Sozinho, o chefe de polícia, Francisco Gonçalves Martins, pega um saveiro e vai para o recôncavo, em busca da proteção do coronel Alexandre Gomes de Argolo Ferrão, senhor do Engenho Cajaíba. De lá tentará uma revanche.
A cidade quedou-se paralisada e José foi uma das centenas de pessoas que andaram até a praça do Palácio para entender o que estava acontecendo. Lá chegando, encontrou a Câmara Municipal aberta e ocupada por populares. Ele atravessou a multidão e viu, sentados nas cadeiras dos vereadores, o professor e médico Francisco Sabino Vieira, o político João Carneiro da Silva Rego e os militares José Duarte da Silva e Luiz Antonio Barbosa de Almeida. Como ainda diria em depoimento à polícia, meses mais tarde, José viu claramente quando Sabino levantou e propôs que o nascente Estado republicano tivesse como presidente o advogado Inocêncio da Rocha Galvão, exilado nos EUA, e como vice João Carneiro Rego. O próprio Sabino, agora como secretário de governo, ditou a primeira ata da recém-criada "República Bahiense", que contou com 104 assinaturas.
Naquele momento, a Bahia dava seu maior e mais ousado salto político. Durante quatro meses - de 7 de novembro de 1837 a 14 de março de 1838 - resistiu bravamente como província livre e independente do governo central. A revolta separatista, que entrou para história com o nome de seu principal articulador, propunha um novo regime e uma sociedade mais justa, com base nos ideais das revoluções francesa e americana. Ao seu final, entre mortos, feridos e prisioneiros, a Sabinada contabilizou mais de cinco mil envolvidos. Cerca de 10% de nossa população participou ativamente de um dos episódios mais sangrentos e pouco estudados de nossa história.
Bandoleiros proclamam, pela cidade, determinações da nova administração. Na manhã do primeiro dia de governo, em 8 de novembro, grupos de bandoleiros já proclamavam as determinações da nova administração. Nos textos, afixados em locais de grande movimento, podemos ler como os rebeldes "perdoavam" os demais soldados que haviam abandonado suas unidades, desde que se apresentassem num prazo máximo de 30 dias. No segundo e último item, a população era convidada ao alistamento militar. Os revoltosos sabiam que o império se articularia para retomar a província e queriam estar preparados.
Na ata que declarou a Bahia um Estado livre e independente, Sabino deixa claro o tom do embate: "A tropa, povo baiano, guardas nacionais e policiais, tendo bastante em vista as necessidades públicas, as bem conhecidas más intenções do governo central, que todas as vezes procurou enfraquecer as províncias do Brasil e tratá-las como colônias, com notável menoscabo de sua dignidade, adotam as bases da separação da província". E anuncia abertamente que a Bahia está "inteira e perfeitamente desligada" do império.
Porém, uma controvérsia no programa político da Sabinada aparece já na segunda assembléia, ocorrida no dia 11, menos de uma semana após a tomada do poder. Uma nova ata é redigida e condiciona a separação da província até a maioridade de D. Pedro II. Muitos historiadores recorrem ao fato para questionar a coerência de uma revolução que tem prazo de validade. Braz do Amaral, por exemplo, acredita que essa é uma "prova conclusiva de que o movimento não foi republicano". Enquanto para Luiz Viana Filho esse recuo tático não comprometeria o caráter republicano da revolta.
Wanderley Pinho tenta solucionar a questão conceituando a Sabinada como uma ação de espírito federalista e monárquico. "A proposta dos rebeldes era governar-se a Bahia, nos seus negócios internos, independente de qualquer outra província, mas fazendo aliança com todas as demais, bem como obedecendo ao chefe D. Pedro II, nos negócios gerais", detalha. No livro Uma história da cidade da Bahia, Antônio Risério ressalta a existência de textos sabinos que defendiam, sim, o regime republicano. "O melhor é reconhecer que não havia homogeneidade, mas projetos diversos", anuncia, apontando a discordância programática como a principal causa para o fracasso da revolta.
A dubiedade marca outra série de ações da Sabinada, a começar pela própria data de início do levante. Temendo a reação do império, já informado dos riscos de uma insurreição iminente, os revoltosos antecipam a tomada da cidade para a noite do dia 6 de novembro, mesmo sem saber com exatidão que forças políticas e militares os apoiariam. Em maio do mesmo ano, o presidente da província avisara à corte sobre os constantes "boatos de desordem" na região. O próprio tema da separação era amplamente discutido no Novo Diário da Bahia, jornal editado por Sabino desde 1836. Para demonstrar a virulência do discurso, Sousa Paraíso envia ao Rio dois exemplares do periódico, trazendo um deles a manchete bombástica: "Poder-se-á dispensar a Revolução no Brasil?"
Com esse clima de instabilidade rondando a província, é surpreendente que o governo central tenha exilado justamente aqui o líder da Revolução Farroupilha, Bento Gonçalves. É igualmente curioso saber que, três anos antes, era Sabino quem fazia o caminho inverso. O médico baiano fora degredado para o Rio Grande por ter assassinado o político conservador Ribeiro Moreira. Lá, Sabino conviveu com idéias farroupilhas presenciando, inclusive, o início da revolução.
Bento chegou à Bahia em junho de 1837 deixando a revolução gaúcha num dos seus melhores momentos. Ao desembarcar no porto, um jornal local ressaltou o seu "ar seco, de aspecto melancólico e sisudo". O farroupilha ficou preso no Forte do Mar durante quase quatro meses. "Em 10 de setembro, a pretexto de banhar-se no mar, ele nadou tranqüilamente para fora da prisão e foi recolhido por um barco", como narra Paulo César Souza, em A Sabinada - A revolta separatista da Bahia.
É difícil saber com precisão a influência de Bento na revolução baiana. Entretanto, sabe-se que o comandante gaúcho, que era maçom, entrou em contato com os irmãos da loja baiana, articulando a própria fuga. Não seria estranho imaginar que sua passagem heróica pela cidade tenha, no mínimo, ressaltado o ânimo dos sabinos. Em As lutas do povo brasileiro, Júlio José Chiavenato tenta explicar por que, ao contrário da Farroupilha, a Sabinada não conseguiu alcançar as camadas populares, estagnando sua ação entre militares e profissionais liberais. "Os baianos são letrados e propagam seu ideário pelos jornais. Tentam convencer o povo da justiça de sua causa. Os gaúchos falam para justificar suas ações, as palavras pouco têm a ver com a realidade e, na guerra, desprezam tudo o que impede a vitória".
Observando trechos do Novo Diário da Bahia é compreensível que César Souza resuma, não sem humor, que os baianos "fizeram pouco e falaram muito". Na edição de 6 de dezembro de 1837, Sabino simplesmente tenta alçar a revolta baiana ao fluxo da história mundial. "A nossa revolução política veio encetar a era brilhante em que a Bahia, com a estabilidade das fórmulas democráticas, vai oferecer à história do mundo quadros majestosos de rápidos melhoramentos, de espantosos progressos, de uma sociedade feliz e bem organizada". Souza avalia que desde o princípio os revoltosos baianos mostraram inclinação para o desempenho de fórmulas e formalidades tradicionais, como se ocupar do papel de governo, em detrimento de agirem como verdadeiros líderes revolucionários. "Em vez de imporem uma revolta, tentaram administrar", analisa.
Em 27 de janeiro de 1838, mesmo sob a ameaça de um ataque iminente, Sabino encontra tempo para ordenar a retirada da placa do obelisco do Passeio Público afixada em homenagem à chegada dos reis portugueses. "É vergonhoso que no Passeio Público dessa capital se apresente um monumento da mais detestada escravidão, no qual se lê o dia em que um déspota sanhudo e ingrato veio infeccionar com o bafo pestífero da corte portuguesa, nosso solo ameno". O decreto também chama a atenção para o estilo pessoal e iconoclasta de Sabino, comprovado em outros ofícios, como este, escrito em 19 de fevereiro e direcionado ao chefe de polícia Freire Mattos: "Mattos do Coração, convém que prossigas hoje mesmo com a captura dos marotos (portugueses) para salvação de nossa esposada Independência do Estado da Bahia. Convém mais e muito convém que os que estão já presos e se houverem de prender estejam incomunicáveis com a gente de fora".
Enquanto os sabinos se perdem em floreios administrativos, os legalistas se articulam no recôncavo, passado um período inicial de indeterminação. No dia 11 de novembro, o tesoureiro geral, Manuel José de Almeida, consegue fugir de Salvador com os 460 contos de réis guardados nos cofres públicos. De São Francisco, o presidente da província dá um prazo de oito dias para que os soldados se apresentem, sob pena de deserção. O mesmo acontecendo com os empregados públicos, que seriam demitidos. Nem o cidadão comum escapa. Aquele que não abandonasse a cidade seria julgado pelo "silencioso crime de conivência". As instituições procuram se recompor e dar base legal para os atos do presidente. O Tribunal da Relação fixa-se em Cachoeira, enquanto o arcebispado, sob a chefia de dom Romualdo Seixas, tem sede em Santo Amaro.
Trabalho também teve o chefe de polícia Francisco Gonçalves Martins. Ele se encarregou pessoalmente de passar nos engenhos e povoados buscando apoio entre os senhores rurais. Daquele que seria o grande articulador do recôncavo, o coronel Alexandre Gomes de Argolo Ferrão, ouviu que não deixasse de visitá-lo, pois precisavam "de um centro próximo e suficientemente autorizado". Acredita-se que o empenho de Martins tenha existido para resguardá-lo de uma futura acusação de conivência, já que ele teria ouvido do próprio Sabino a proximidade de uma revolta armada. Em julgamento posterior, o chefe de polícia se defenderia alegando falta de lastro judicial para prender o médico..
Ainda em novembro, um barco de guerra começa a patrulhar a Baía de Todos os Santos, desviando de Salvador os gêneros de primeira necessidade. Os reforços do Império - dinheiro, armas e soldados - não param de chegar a Cachoeira, escolhida como cidade-base dos legalistas, exatamente como o fora durante a invasão holandesa e na guerra pela independência. Ilhados, os sabinos presenciavam a fuga de dezenas de pessoas e as deserções militares sem nada poder fazer. Aos poucos, a cidade rebelde perde suas forças. No início de 1838, a província está sob as ordens de um novo presidente, o mineiro de 37 anos Antonio Pereira Barreto Pedroso, e de um novo comandante das armas, o general português João Crisóstomo Calado. Em Pirajá, a tropa legalista já conta com quatro mil homens prontos para um confronto por terra. O bloqueio marítimo não é menos ameaçador. Da janela do palácio do governo, Sabino observa agora 16 navios cercando a capital. A batalha final não tardava por acontecer.
Canhão rebelde faz disparos, na Mata Escura, contra a tropa expedicionária de Pernambuco. O início da reconquista se dá mais ou menos de improviso. De uma colina do Bate-folha, em Mata Escura, no "ponto em frente ao candomblé", segundo relato da época, um canhão rebelde começa a disparar contra a tropa expedicionária de Pernambuco, abrigada nos campos de Pirajá. Era 13 de março de 1838 e o reforço de 500 homens enviado pelo Império espera até a madrugada deste mesmo dia para tomar de assalto a trincheira rebelde. Após o sucesso do ataque ao terreiro, o general Crisóstomo Calado decide "aproveitar o momento, mandando avançar as demais brigadas". Seguem-se, então, três linhas de combate: a do centro, comandada pelo coronel Argolo Ferrão, responsável pelo confronto no Resgate; a da direita, do coronel Correia Seara, que entra na cidade por São Caetano e, finalmente, a coluna da esquerda, sob o comando do coronel Sepúlveda, que penetra por Itapuã.
O comandante geral não espera a reação. São 7h do dia 14 e ele ordena o ataque geral. A tropa, armada com baionetas, marcha até às 6h da tarde com um objetivo: reconquistar o Forte de São Pedro, quartel-general dos revoltosos. A cada investida, retomam uma posição. Primeiro recuperam a Península de Itapagipe e o Forte da Jequitaia. Os engenhos de Plataforma e do Cabrito também passam para o lado legalista. Sobre a marcha para Salvador, Wanderley Pinho diria que "a penetração e conquista da cidade se deu bairro a bairro, rua a rua".
O confronto entre as duas facções é brutal. O Exército imperial massacra civis e militares que encontra pela frente. Seja porque só as raposas (como o povo chamava os rebeldes) tivessem permanecido na cidade, ou porque os perus (legalistas) estavam cansados de esperar a retomada, o fato é que nunca houve na cidade batalha tão desumana. "A capital foi invadida por um Exército cheio de ódio, de rancor, de crueldade, e que lançava dentro das casas incendiadas, ainda vivos, os rebeldes que aprisionava. Vencedores e vencidos atearam fogo às edificações. A velha capital, a arder numa grande fogueira, pagou caro o seu crime", narrou Luiz Viana Filho, em A Sabinada.
O próprio comandante Calado reconhece os excessos em posterior relatório à corte, apesar do cinismo de sua observação final. "Os soldados, com efeito, e seus valentes chefes, excederam muito de minha expectativa, e o combate se tornou tão encarniçado que as armas se dispararam mutuamente sobre os peitos (dos combatentes)". Largando atrás de si milhares de cadáveres, a tropa imperial chega à Lapinha às 5h da tarde do dia 14. Para Paulo César Souza, "a cidade nunca vivera tamanha destruição e selvageria. O colapso das normas de conduta, tão comuns nos tempos de guerra, manifestou-se em saques, estupros e assassínios". A essa hora, Calado já havia conquistado o Forte do Barbalho e mandado para lá os prisioneiros. "Então, recolhi todas as forças no Largo do Convento da Soledade, fazendo cobrir meus flancos, frente e retaguarda, e aí me demorei duas horas, enquanto aprisionava mais rebeldes metidos pelas casas".
O célebre major negro Santa Eufrásia suicida-se para não morrer nas mãos dos legalistas. Apesar do cansaço da tropa, que lutava há quase 24 horas, Calado não dá trégua. "Segui a ocupação da cidade. À noite debatendo-se até o Largo da Piedade, a 300 passos do Forte de São Pedro, era forçoso assentar campo pela forte oposição do inimigo. Sustentamos fogo durante a noite em vivo alarma, bem como também faziam ao Forte do Mar os nossos navios armados". A madrugada mais longa de Salvador foi açoitada com o barulho dos tiros e canhões disparados de ambos os lados. Na manhã do dia 15, após rápida parada na qual a tropa recebe água e comida, Calado dá a última e crucial ordem: cercar o Forte de São Pedro. Da fortaleza, os sabinos, desesperados, abrem fogo contra os legalistas, ferindo e matando muitos soldados da linha de frente. O ataque dura um dia sem que o Império retroceda. Às 6h da tarde, os revoltosos, sem munição, içam uma bandeira branca.
O comandante rebelde Sérgio José Velloso ainda tenta negociar. Envia a Calado um bilhete de capitulação no qual propõe anistia para os revolucionários. "A força militar sob o comando do abaixo-assinado, desejando evitar de uma vez o derramamento do sangue brasileiro, propõe o seguinte: primeiro, que se depõem desde já as armas, sob condição de liberdade a todos, que jamais devem ser tidos como criminosos pelo simples fato de desentendimento de opinião política". Ao que Calado responde lacônico e soberano: "Ao general do Exército brasileiro, com forças sobre o Forte de São Pedro, só convém que a guarnição rebelde se entregue imediatamente".
Cansados, famintos e sem saída, saem do forte 586 praças, oito oficiais, o chefe Velloso e 15 cornetistas. Em seguida, Calado recebe a notícia de que os rebeldes do Forte do Mar e do Forte da Gamboa também impõem condições para a rendição. "Ao que eu ameacei arrasá-los se não se entregassem no espaço de meia hora e, assim, o cumpriram". O núcleo rebelde em Feira de Santana também foi debelado. Soube-se de revoltosos em Jiquiriçá, Barra e Canavieiras, mas estes nem chegaram a se articular. O saldo final da batalha contabilizou 1.258 mortos, 160 casas incendiadas e 2.298 presos políticos. Já no dia 17, o novo presidente da província, Antônio Barreto Pedroso, escreve ao Império sobre a reconquista, sentado na cadeira do Palácio do Governo. Barcos e saveiros com refugiados no recôncavo chegam ao porto.
Francisco Sabino Vieira colecionava 436 volumes da mais expressiva biblioteca privada do seu tempo. O professor catedrático Francisco Sabino Vieira possuía uma das mais expressivas bibliotecas particulares de seu tempo. Em sua residência, nas portas do Carmo, ele colecionava 436 volumes, dentre eles o recém-lançado De la democratie em Amerique, de Aléxis Tocqueville. Era surpreendente que daqui, desse ponto da América do Sul, um homem estivesse tão inteirado do fluxo das idéias políticas européias. Os oficiais que fizeram o levantamento dos seus bens após a retomada da cidade sabiam disso. E ressaltaram a existência de "perigosos" pensadores iluministas, como Voltaire e Rousseau, em sua estante. Também Locke, Milton e Pope se apertavam contra manuais de anatomia e obstetrícia. Política e medicina: suas grandes paixões.
Mas enquanto os oficiais devassavam sua casa e varriam a cidade à sua procura, Sabino se protegia da fúria legalista no casarão do cônsul francês. Aí ele foi encontrado apenas na manhã do dia 22 de março. Aos 40 anos, estava escondido num armário, "coberto de roupa suja, de camisa e descalço". Saiu preso e incomunicável, sendo posto em ferros, a bordo da corveta 7 de Abril.
O homem que batizou uma revolta era um belo mulato de olhos azuis. Sabino tinha uma "estatura mediana, testa alta e larga, com uma cicatriz transversal no rosto, sobrancelhas grossas, cabelos castanhos e crespos, barbas fechadas e suíças pequenas", como descreveu o funcionário que lavrou seu termo de prisão. Bonito e eloqüente, antes desse grande papel, Sabino já havia figurado em inúmeros outros episódios de nossa história.
Participou da resistência à posse de Madeira de Melo, em 1822, evento que desaguaria na luta pela independência. Na batalha do Dois de Julho, foi preso por radicalismo contra o inimigo, por ordem do próprio general Labatut, como nos conta Luís Henrique Dias Tavares, em A Independência do Brasil na Bahia. Mesmo não sendo militar, seu nome aparece ao lado de importantes movimentos da classe. Em 1824, apóia o levante do Batalhão dos Periquitos. Mais tarde candidata-se ao cargo de cirurgião-mor do Hospital Militar, mas não é aceito por conta de seu espírito exaltado. Converte-se então ao jornalismo, editando o Investigador Brasileiro e, mais tarde, o Novo Diário da Bahia, este último persistindo até o final da revolta separatista.
De ânimo virulento e arrebatado, Sabino protagonizou agressões e assassinatos. Em novembro de 33, é xingado em plena rua pelos irmãos José Joaquim e Vicente Ribeiro Moreira. Especula-se que Vicente, adversário político e editor do concorrente Jornal do Comércio, o tenha insultado por suas inclinações homossexuais e pela conseqüente morte da esposa, a jovem Joaquina Gonçalves, de 25 anos. Sabino revida a ofensa com uma bengalada e, para defender o irmão, Joaquim jura-o de morte.
No mês seguinte, após uma aula de fisiologia na Escola de Medicina, no Terreiro de Jesus, Sabino segue para a Secretaria de Governo, na Praça Municipal. No percurso, é agredido por José Joaquim e com ele se atraca à luz do dia. Em frente à Câmara Municipal, Sabino se defende com um bisturi, matando o opositor. Condenado a seis anos de prisão, ele passa apenas um na cadeia e é exilado no Rio Grande do Sul.
A morte de sua mulher deu-se meses antes. Era noite e Sabino estava deitado na rede, na residência do casal, na Rua da Castanheda, em Nazaré. Joaquina chegou e viu-o "servindo-se de um homem preto como se fora mulher" , como diriam, mais tarde, as testemunhas que ouviram o relato da preta Maria, escrava da casa. Flagrado em pleno ato, Sabino investiu contra Joaquina com uma faca. Na confusão, ela cai da escada e fratura o braço, que infecciona. Apesar dos posteriores cuidados do médico, a moça acaba morrendo de tétano. Sabino se vê implicado num processo judicial, mas é absolvido.
Com esse histórico não é de surpreender que os grandes homens da província tenham rejeitado um governo sob sua liderança. Ser subversivo e "falso ao corpo" era demais para gente como o senhor de escravos Antonio da Rocha Pita e Argolo, que, ao oferecer 60 homens para o Exército legalista, disse uma frase tornada célebre: "Dou esta gente não porque não adote a revolução, que acho até boa, mas porque não quero ser governado pelo doutor Sabino".
Preso e incomunicável na Baía de Todos os Santos, Sabino percebia que sua carreira política e acadêmica havia chegado ao fim. O catedrático e ex-aluno exemplar, que se formara aos 17 anos, não via diante de si nenhum futuro. No final do ano, o Júri de Sangue, assim chamado pela inclemência com que julgou os revoltosos, condena-o a morte. Seus companheiros teriam o mesmo fim.
Sucessivos recursos se arrastam até agosto de 1840, quando o adolescente Pedro, de 14 anos, assume o Império brasileiro, após um golpe de Estado que antecipa sua maioridade. Seguindo o conselho de ministros, o jovem imperador anistia os súditos envolvidos em crimes políticos ocorridos durante a regência. Com uma condição: afastá-los dos grandes centros urbanos. Sabino segue para Goiás, enquanto os demais líderes se dividem em pequenas cidades de Minas Gerais e São Paulo. O francês Alexandre Gaullet, presença ativa da força sabina, é repatriado para a Europa.
A trajetória de Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira ainda não foi devidamente resgatada. Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira não virou nome de rua, de escola ou sequer possui um quadro com sua imagem em nossa cidade. Nasceu na Salvador de 1797, faleceu 49 anos depois em Mato Grosso e, hoje, seus ossos descansam numa urna de 50cm num corredor do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IHGB), na Piedade. O temor que sua delirante tentativa causou na corte ao tornar a Bahia independente é geralmente resumido em três parágrafos nos livros do ensino médio. A nossa memória, sim, corre mais riscos.
"A Sabinada é um movimento muito pouco estudado. É necessário se debruçar, por exemplo, sobre a falta de amadurecimento programático dos revoltosos", ressalta o historiador e tradutor Paulo César Souza. Autor de A Sabinada - A revolta separatista da Bahia, um dos poucos livros escritos sobre o tema, Paulo dá a dica para novas pesquisas: "Existem muitos documentos aqui em Salvador, mas boa parte está no Rio de Janeiro, a sede do Império. Aqui estão muitos documentos oficiais, mas lá estão os jornais com o pensamento dos revoltosos", detalha. Periódicos revolucionários, como o 7 de novembro, descansam na seção de microfilmagem da Biblioteca Nacional e do departamento de História da Universidade de São Paulo, mas não podem ser encontrados na Bahia.
César Souza escreveu uma obra de referência no assunto como resultado de sua dissertação de mestrado. Ele consultou os cinco volumes de documentos impressos pelo Arquivo Público da Bahia, editados em homenagem ao centenário da insurreição, e ainda teve acesso aos jornais da época. "A repressão violenta empreendida contra a Sabinada e suas idéias foi o coroamento de todo um período de lutas urbanas ocorrido nas primeiras décadas do século XIX. Depois da Sabinada, nenhuma outra grande revolta ocorreu na Bahia durante o Império", analisa.
Outra questão que merece ser ampliada é de como os sabinos trataram a escravatura. "Os rebeldes não chegaram efetivamente a pronunciar a palavra ''liberdade'' em relação aos escravos. Seus jornais traziam artigos clamando pela ''soberania do povo'', tranqüilizando esse povo quanto a uma possível insurreição africana". Para Souza, essa incoerência decorre de uma existência social que limitou o desejo de mudanças mais profundas. "A escravidão era a instituição básica, estava na raiz. Eles (os sabinos) não foram radicais, não tocaram as raízes. Foram incapazes de pensar além de um horizonte ideológico de uma sociedade escravista", conclui.
Mais timidamente, Nelson Werneck Sodré afirma em As razões da Independência que a grande "importância da Sabinada estava em suas origens: movimento da camada média, ilhava-se nessa camada, como ilhara-se numa cidade". O próprio Werneck adverte para o viés que analisa a Sabinada como uma revolta de rua e enfatiza que nosso povo não é tão "ordeiro e pacífico" como nos fazem crer.
Sem tanto esforço percebe-se, porém, como a Sabinada pode ser estudada criativamente pelos nossos professores de história. Associar os efeitos da Revolução Francesa aos inúmeros movimentos nacionais é um caminho. O próprio Luiz Viana Filho mostra como o pensamento europeu teria dado "novo e vigoroso sentido à crise e ao mal-estar dos habitantes da província". Aqui as novas doutrinas eram divulgadas em sociedades políticas, lojas maçônicas e em dezenas de periódicos. Mesmo não participando diretamente da Sabinada, muitos estrangeiros que habitavam em Salvador viam com bons olhos a proposta rebelde, inspirada em ideais de seus países.
"A gente sempre acha chato estudar história, mas tem coisa que realmente é interessante. Aconteceu aqui, por onde a gente anda. A Sabinada bem que poderia ganhar uma versão cinematográfica como acontece com a Farroupilha, virando minissérie da Globo. Se fosse nos Estados Unidos, qualquer briguinha rendia logo um filme", opina a estudante Raíssa Andrade Silva, 17 anos. Em verdade, o próprio César Souza soube de roteiristas interessados em transformar a Sabinada num longa. "Mas a idéia não foi adiante. É uma pena, porque é uma história que rende muita emoção", analisa.
Mas se a República Bahiense termina com a prisão de seus líderes, a história de Sabino não acaba com seu exílio em Goiás. Nessa província ele chegou a casar-se novamente, tendo com Rosa, filha de Francisco Manuel Vieira, os filhos Fabio e Eponina. Em carta enviada pelo senador Antonio José Caiado ao Instituto Histórico, o político afirma que Sabino "não tardou em tornar-se um chefe prestigioso do Partido Liberal local, conquistando numerosos amigos e verdadeiros admiradores". Com medo que se repetisse em sua província o caso baiano, o presidente José de Assis Mascarenhas expulsa Sabino de Goiás, em 1844.
No mesmo ano, em passagem pela longínqua Fazenda Jacobina, no Mato Grosso, Sabino torna-se amigo do coronel João Carlos Pereira Leite, que se responsabiliza por sua tutoria. Sabino, então, se concentra na atividade clínica, mas, ainda assim, edita um jornalzinho chamado O Bororó. O médico não mais se afasta da região e aí morre, em 1846, de causa ignorada. Cinqüenta anos depois, os membros do Instituto Histórico da Bahia articulam com a família Leite o translado de seus restos mortais para nossa cidade.
*Jussilene Santana. Revolta Bahiense - Sabinada transforma a Bahia em província independente durante quatro meses em fins de 1837. Correio da Bahia, 14 de março de 2003. Este artigo está disponível no site: www.correiodabahia.com.br/2003/03/14/noticia.asp?link=not000072259.xml