Celestino Bourroul
Dr. Carlos Bourroul
A família Bourroul origina-se de Antibes, França. O patriarca Antoine Joseph, ávido por aventuras, contava aos filhos histórias sobre terras remotas, entre elas o Brasil. Etienne, um deles, resolveu conhecer o país e, por volta de 1830, desembarcou na Província de São Paulo, onde decidiu estabelecer-se no comércio. Bem sucedido, chamou os irmãos Camilo e Celestino.
Casaram, constituíram família e multiplicaram-se. Descendentes dos Bourroul, os primos Paulo e Sebastiana uniram-se, em São Paulo. Dessa união nasceu, em 13 de novembro de 1880, o único filho, Celestino, que seria considerado no futuro um dos mais conceituados médicos do Brasil.
Celestino Bourroul aprendeu as primeiras lições na escola do padre Hipólito, completadas depois no Colégio São Luís de Itu, que desde 1867 recebia famílias de nível econômico e cultural elevados. Matriculado nessa escola aos treze anos, logo os professores notaram que se diferenciava dos demais alunos pela inteligência e aplicação. Concluído brilhantemente o curso de Humanidades, retornou a São Paulo. A vocação da nova carreira manifestara-se: Medicina. Pretendia seguir a trajetória do pai, Paulo Bourroul.
No início de 1899, viajou para a Bahia, onde se matriculou na Faculdade de Medicina de Salvador. Não optou pelo curso existente no Rio de Janeiro porque a cidade apresentava surtos periódicos de febre amarela e varíola.
Sobressaindo-se notavelmente pelas notas obtidas durante o curso, graduou-se com distinção, em 1904. A tese de formatura, obrigatória na época, escolheu-a pelo interesse em redigir um trabalho inovador: Mosquitos do Brasil. Uma viagem à ilha de Itaparica, rica em beleza, proporcionou-lhe a possibilidade de realizar o trabalho de pesquisa. Celestino criou um mosquito no ambiente da água das bromeliáceas. Descreveu assim sete novas espécies, das quais uma com certeza foi por ele descoberta, o que trouxe importante contribuição para a Parasitologia. A dissertação, que consideraram de grande importância à Medicina, proporcionou-lhe nota máxima, lamentando a banca não existir o louvor superior para premiá-lo. Recebeu, entretanto, a distinção de laureado, que conferia ao aluno de destaque pela inteligência, excepcional aproveitamento e conduta exemplar, o prêmio de uma viagem à Europa.
Em 1904, voltando a São Paulo, preparou-se para ir à França, onde se aperfeiçoaria. Lá estudou com o Prof. Grasset, médico de fama internacional, completando o aprendizado no Instituto Pasteur de Montpellier, onde o famoso bacteriologista Prof. Rolart chamou-o para que organizasse o curso de Microbiologia. Em Berlim, para onde seguiu, estagiou no laboratório de Anatomia Patológica do Prof. Orth. Terminados os estudos, partiu para Viena, onde se especializou em Clínica Médica, Radiologia e Anatomia Patológica.
Retornando ao Brasil, instalou consultório em São Paulo. Aproximou-se dos cientistas, intelectuais e religiosos, porquanto desde jovem mostrava-se católico fervoroso, demonstrando-o pela homenagem que fizera à Virgem Santíssima no preâmbulo de sua tese.
Aos trinta anos era médico consagrado. A afeição de Adolfo Lutz, o cientista que o orientara na dissertação de formatura, os artigos escritos nos renomados centros médicos da França, Áustria e Alemanha, tudo contribuiu para torná-lo conhecido e respeitado. O binômio Bourroul-Lutz durante anos orientou pesquisadores como Osvaldo Cruz, Carlos Chagas e Artur Neiva.
Em 1912, casou-se com Maria da Conceição Monteiro de Barros, estudante da Escola Normal Caetano de Campos, na época com dezenove anos. O casal teve oito filhos e viveu unido por mais de trinta anos. Depois que a perdeu, Celestino Bourroul jamais tirou o luto.
Em 5 de agosto de 1914, assumiu na Faculdade de Medicina a Cátedra de História Natural Médica, denominada mais tarde Parasitologia. Em 1921, estabelecido um convênio técnico-financeiro com a Fundação Rockfeller dos Estados Unidos, aceitou ser o seu representante. Acompanhou com muito interesse a construção da Faculdade de Medicina, iniciada em 1928 com o auxílio de Júlio Prestes, então presidente do Estado de São Paulo, e o apoio da Fundação, que o fez com o trato de se construir também o Hospital das Clínicas. O edifício seria inaugurado em 1930. No ano seguinte, a Faculdade era equiparada aos melhores padrões federais e, em 1934, integrada à Universidade de São Paulo.
Em 1950, Celestino Bourroul, vice-diretor pela terceira vez, sentiu-se recompensado quando a Faculdade foi colocada entre as escolas médicas de alto nível devido ao padrão e qualidade de ensino pelo Council on Medical Educations and Hospitals of the American Medical Association and Executive Council of the Association of Medical College.
Desde 7 de outubro de 1921, fora nomeado chefe da Clínica Médica do Hospital Central da Santa Casa de Misericórdia. O espírito de humanidade, que lhe era peculiar, fazia-o considerar cada doente um ente querido. Católico fervoroso, nas datas cristãs organizava grandes festejos. No natal de 1937, a 6ª enfermaria dos homens, que chefiava, homenageou-o pelos cinqüenta anos de
formatura, e ele, conhecendo a todos, cumprimentou-os de leito em leito, dando-lhes o conforto necessário.
Celestino Bourroul dividia-se entre a Santa Casa e a Faculdade de Medicina, entidades que se apoiavam mutuamente. Na realidade, a enfermaria da Santa Casa era o centro onde os alunos das três escolas médicas paulistanas – a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a Escola Paulista de Medicina e a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa – praticavam.
Algum tempo depois, motivados pelas estatísticas que, desde 1930, demonstravam um aumento significativo de mortes por tumores malignos, Celestino Bourroul, Antônio Cândido Camargo e Antônio Prudente propuseram-se organizar um serviço especializado nessa área. Fundaram a Associação Paulista de Combate ao Câncer – APCC, apesar de se defrontarem com o preconceito de muitos que, amedrontados, preferiam não enfrentar a doença. Durante três anos divulgaram a idéia e educaram a população, mas somente em 1943 apareceram os primeiros donativos. Dez anos depois, em 23 de abril de 1953, a Associação começou a atender o público no Hospital Central. Quando o Prof. Bourroul foi indicado para presidi-lo, modestamente respondeu: Precisam de alguém com real prestígio. Eu não serei de grande utilidade. Somente em 1957 consentiria em presidir a entidade. A APCC transformou-se, em 1974, em Fundação Antônio Prudente. Em homenagem aos serviços notáveis prestados pelo Prof. Celestino Bourroul, deram à Escola de Cancerologia, órgão que congrega o ensino do Hospital do Câncer A. C. Camargo, o seu nome.
O grande médico lecionou por trinta e sete anos, tendo como princípio a ética no amor ao doente. O trabalho, baseou-o na bondade, na paciência, competência e amor a Deus. Nunca deixou que a fama afetasse sua personalidade simples e humana. Exigente no ensino, tinha um caderno de assiduidade, aproveitamento, nome e fotografia dos alunos, onde assinalava o curriculum anual de cada um. Embora enérgico, os alunos consideravam-no um mestre perfeito, orientando-os não só nos problemas médicos como pessoais.
Durante anos recebeu significativas homenagens no Brasil e no exterior. Destacamos aqui a condecoração que o imperador do Japão lhe concedeu por ter atendido graciosamente à comunidade nipônica de São Paulo. Recebeu também o título de Professor Emérito dado pelos propagandistas farmacêuticos, pelo cavalheirismo com que os atendia nos consultórios.
Exerceu inúmeros cargos: cátedra de História Natural Médica, Parasitologia (1914); cadeira de Clínica de Doenças Tropicais e Infecciosas (1925); chefia da Clínica Médica da Santa Casa de Misericórdia (1931); direção do Departamento de Higiene da Faculdade de Medicina.
Honrado pela capacidade profissional, pela notoriedade na profissão e, sobretudo, pela humanidade que o caracterizava, pertencia a muitas instituições: Associação Paulista de Medicina, Sociedade Francesa de Cardiologia, Academia de Medicina da Argentina, Faculdade de Medicina de Montevidéu (da qual era professor Honoris Causa), Academia de Medicina de São Paulo, Academia Nacional de Medicina, Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (da qual foi presidente), entre outras.
Em novembro de 1950, catedrático na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na cadeira de Doenças Tropicais e Infecciosas, afastou-se por indicação médica com o diagnóstico de perturbações cardiovasculares.
Aposentado da Faculdade, com setenta e dois anos, continuou trabalhando: à tarde atendia no consultório, que apenas deixou em 1955; e todas as manhãs freqüentava a enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, das 8 às 10 horas, quando examinava todos os doentes. Seu argumento para continuar nessa rotina era: quem cuidará dos que não podem pagar? Embora rodeado de todos os cuidados médicos, foi obrigado a deixar a Santa Casa, o que fez com imenso sacrifício.
Em 9 de outubro de 1958, faleceu Celestino Bourroul, um dos maiores médicos brasileiros. Baseou sua vida na fé, no trabalho e na bondade. Em suas últimas recomendações, escreveu:
A todos um “Deus lhe pague” e um “Adeus” - até no céu onde nos encontraremos um dia, sem mais separação, para sempre.