Aluizio Bezerra - Um Sábio Pernambucano do Século XX

22/06/2011 23:11

Aluizio Bezerra Coutinho

Um Sábio Pernambucano do Século XX (*)
                                        
                                                   Geraldo Pereira (**)
                                                                ( pereira@elogica.com.br )
 
 
                Muito me honrou o convite para escrever sobre o professor Aluizio Bezerra Coutinho, sobretudo porque integrando uma plêiade de autores da maior significância; alguns desses antigos alunos do mestre ilustre e outros apenas companheiros de convivência intelectual e científica. Já ai uma demonstração inequívoca da pluralidade que marcou Coutinho, sem dúvida alguma um dos pernambucanos de inteligência mais acurada e de formação cultural mais apurada do século XX, além do aguçado talento de que era portador. Médico e biólogo que ultrapassou as fronteiras, aparentemente rígidas, dessas ciências, para trafegar com competência nas searas da filosofia e da matemática, na disciplina agora independente da ecologia ou na perspectiva da história e da geografia, sem esquecer a arquitetura, com a qual lidou ainda estudante, quando preparou sua tese de doutorado; ligação mais adiante melhor detalhada. Ciências que serviram sempre na fundamentação de suas lúcidas explicações em sala de aula, durante os mais de 40 anos em que ensinou na Faculdade de Medicina.
 
                Com isso,isto é com o reconhecimento da profunda cultura do homem que inspira o presente texto, também concordava Lobato Paraense, quando afirmou textualmente:  “Munido de uma caixa de preparações histopatológicas selecionadas, tive a sorte de fazer, em pouco tempo, duas grandes amizades. Aluizio Bezerra Coutinho, dotado de uma das mais sólidas culturas que até hoje me foi dado conhecer, estava em via de conquistar, aos 26 anos, a cátedra de Patologia Geral. Reconhecendo minha experiência em técnica histológica, apresentou-me ao Professor Aggeu Magalhães, catedrático de Anatomia Patológica, que ia precisar de um auxiliar-acadêmico para preencher uma vaga a ser aberta com a formatura de um estudante. Aggeu Magalhães, ciente de meu interesse pela Patologia perguntou-me se eu estava disposto a morrer de fome. "Se o senhor — respondi — é mais velho do que eu e está vivo, pelo menos chegarei à sua idade".
 
                Em trabalho que publicou na revista Oficina de Letras, fruto de uma conferência no simpósio “Da Natureza da Vida”, o Prof. Adonis Carvalho, ex-aluno de Coutinho, deu a dimensão exata da grandeza do sábio que este ensaio pretende abordar. É que fazendo referência às vertentes científicas e culturais todas, ou quase todas, trilhadas pelo cientista ilustre, aponta que o saber do professor foi durante muito tempo aplicado, integralmente, na disciplina de patologia que ensinava no curso médico. Essa, no entender de Carvalho, a qualidade maior em Coutinho. Tudo o que sabia e tudo o que discutia tinha como destino final a cátedra que ocupava, na qual pontificou como um sábio, verdadeiramente. Isso é, realmente, uma verdade bem assentada, haja vista a convergência que mantinha nessa perspectiva. Foi assim, por exemplo, que discutia a teoria dos sistemas, como se terá mais adiante neste texto mesmo. Mas, o autor ainda destaca, dentre tantos aspectos da vida do professor, a coragem pessoal de que se valia para defender a verdade. O que sobressai em Bezerra Coutinho, comenta Adonis Carvalho, é o fato de ter sido sempre um médico, um professor de medicina, para cujo reino trouxe todas as ciências, numa brilhante visão integrada. Era, como parece agora, um homem único, mas de uma visão científica que ultrapassa o apenas multidisciplinar ou o transdisciplinar.
 
                Na mesma conferência de que se vem tratando há uma referência importante ao pioneirismo de Coutinho, quando Carvalho afirma que ele se antecipou, por quase duas décadas, a René Thom, patrono da teoria da catástrofe. De importância, também, é a citação do filósofo Michel Foucault, quando postulou que: “la nuit vivant se dissepe a la clarté de la mort.”. E, então, Adonis aproveita a alusão ao francês, para justificar a clareza com que o mestre Bezerra Coutinho descortinou, em fígados de doentes falecidos de esquistossomose mansônica, como se aborda mais adiante, o risco do tratamento dessa parasitose, na qual os vermes morrem, verdadeiramente, mas o hospedeiro corre risco semelhante. Mas, Carvalho finaliza o seu trabalho lamentando que as lições de Aluizio Bezerra Coutinho não tenham sido bem aprendidas e lamenta que no Recife se esteja fazendo um programa de erradicação da filariose, com risco, também, à semelhança da esquistossomose, de que os vermes mortos venham a obstruir os linfáticos e assim produzirem elefantíase. Mas, encerra dirigindo-se ao mestre, dizendo, literalmente: “Meu caro mestre Aluizio Bezerra Coutinho: fique certo que se esses não aprenderam as suas lições, muitos outros a aprenderam e a seguem.”.
 
                Sobre René Thom, antes j posicionou-se recentemente Vladmir I. Arnold, trazido aqui pela palavra de Newton da Costa, que se coloca em situação quase antagônica ao matemático francês, acusando-o de difícil compreensão, em função da falta de clareza nos conceitos. Dificuldade, inclusive, acentua o soviético, de ordem poética ou filosófica, por falta de clareza, igualmente. Mas também afirmativas, insiste o autor, compatíveis com os conhecimentos medievais, anteriores a Descartes e a Bacon. Embora, continua Arnold, comentado por Costa, nada da filosofia irracional afetou as descobertas matemáticas de Thon. Nas mãos do cientista nascido na França, continua Vladmir Arnold, a teoria da catástrofe assume uma condição mística, quase religiosa. Nada disso, porém, invalida as descobertas matemáticas fundamentais do grande matemático. O fato de que para uns a teoria se aplica a tudo ou a quase tudo gerou polêmica e os críticos do cientista consideraram que havia exagero nisso.
 
                Sobre a tese de Aluizio Bezerra Coutinho, defendida em 1930, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro comenta, com muita propriedade, Geraldo Gomes da Silva, arquiteto no Recife e professor de arquitetura da UFPE: foi ele quem percebeu, com maior clareza, os novos rumos da discussão teórica sobre a arquitetura moderna. Por isso, enfatiza o autor, não poderia o trabalho continuar desconhecido dos estudiosos brasileiros. Geraldo Gomes defende que o médico, como não seria de se esperar, tinha uma preocupação maior com a higiene da habitação. Mas, o mestre de que se vem tratando preocupou-se, também, com o urbanismo, como se depreende de artigo incluído na revista “Agitação”, citado pelo mesmo Gomes, periódico de cultura editado pelo grupo agitacionista da Faculdade de Direito do Recife. No ensaio, intitulado “Idéias sobre um Recife de amanhã”, de 1932, Coutinho apresenta-se como um antecipador, quando sustenta que a circulação de veículos é um dos mais importantes problemas do Recife e formula a ideia de bairros satélites, alinhando-se com as concepções contemporâneas. Foi, ainda, de Bezerra Coutinho a proposta de que os novos materiais e as novas técnicas viriam propiciar uma revisão das funções de cada parte dos edifícios. Atribuiu, de igual forma, à independência das estruturas de aço e de concreto a liberdade de tratamento dos muros, até ali meros septos.    
 
                No período em que ensinou patologia as suas exposições teóricas levavam a turma, frequentemente, à perplexidade, tal a profundidade com que apresentava os capítulos ou os tópicos do programa e tal o saber com que se manifestava. Foi assim que conheci o professor Aluizio Bezerra Coutinho, sendo seu aluno na graduação, no curso médico, no primeiro semestre do terceiro ano, hoje designado, apenas, como 5º período. Tínhamos aulas todos os dias, no horário da manhã, sendo essas lições rigorosamente gravadas em equipamento antigo, de rolo, e depois transcritas para o papel, se constituindo em apostilas que hoje representam raridades, pois que guardadas a sete chaves por quem as possui, são raramente emprestadas. Para escrever sobre ele – sobre Bezerra Coutinho –, contei com o beneplácito de meu colega de turma Mário Estima, médico em Juazeiro, no Ceará, em pleno Cariri, que me mandou cópias desse material, uma relíquia do saber múltiplo do professor.
 
                Essas preciosidades – as apostilas – encerram lições de um saber indiscutível; lições nem sempre compreendidas por nós outros, seus alunos, postos entre a hesitação da hora e a dificuldade em refletir, pensar, necessariamente, por conta de um ensino no qual era comum receber os conceitos prontos, a frase feita e as definições nunca questionadas; ensino secundário, principalmente, mas também aquele do terceiro grau. Por outro lado, havia por parte dos mais adiantados, quase sempre mais velhos também, certo terrorismo em relação à matéria, com insinuações em torno das dificuldades em se estudar e a quase impossibilidade de se compreender o que dizia Bezerra Coutinho. Talvez tudo isso levasse a uma miopia coletiva, a qual dificultava o entendimento das aulas e a compreensão dos textos. O que não havia, posso imaginar, era um preparo adequado do alunato para ouvir e apreciar o pensamento do mestre, avaliando concepções e noções com aplicabilidade prática bem direcionada. É lamentável que esse estado de coisas tenha trazido tantos obstáculos ou tantos impedimentos à nossa compreensão.
 
                Atualmente, no entanto, a leitura encanta, sobretudo porque desmistificada, sem compromissos com exames finais, livre de qualquer amarra que possa inibir o entendimento. Como são interessantes os conceitos e como são lúcidas as definições! Muita coisa, porém, apresenta um grau de dificuldade que ainda hoje penitencia quem lê, mesmo o adulto sessentão. Uma dessas aulas, abordando a dinâmica das populações e ferindo o tópico do comportamento das epidemias, quando os susceptíveis vão tombando e aqueles que se tornaram imunes resistem à ação do elemento invasor, seja um vírus ou um protozoário, é uma lição de demografia aplicada ou de epidemiologia clínica. De tal forma bem alicerçada, que o leitor, embora leigo, compreende com regular facilidade as mudanças que se passam nas comunidades ou nas sociedades humanas, com repercussões na pirâmide populacional. E assim hão de se manifestar os registros da gripe suína, por exemplo, a qual parece ter respeitado aqueles que traziam resquícios de resistência imunológica adquirida em episódios anteriores, sobretudo aqueles de outras pandemias. Ou assim foi, há algum tempo atrás, com a gripe espanhola e com a gripe asiática ou com a leptospirose e a meningite.
Uma questão para a qual o professor, também, chama a atenção é a da relação entre populações diferentes, adentrando nos mistérios da ecologia. Mostra que na hipótese de um animal A ser carnívoro, convivendo com o animal B, que é herbívoro, em ambiente no qual há, também, vegetais (C), as populações têm uma dinâmica que se relacionam de forma íntima. Quando A aumenta em número, fatalmente faz cair a população B e permite o crescimento dos vegetais. Se a parte nomeada como C (vegetais) cresce, consequentemente promove um incremento de B e, por conseguinte, de A. É dele o exemplo de que a raposa é amiga das couves, pois devora os coelhos, mantendo-as por consequência. Mas, o raciocínio é feito como introdução à questão parasitária, detalhe que se poderá depreender adiante. Questão que pode envolver mais de uma população.
 
                Mas, antes dessas aulas tão específicas, nas quais são abordadas questões próprias da ecologia e da relação hospedeiro/parasita, Bezerra Coutinho prendeu-se á definição de população e teceu considerações em torno das relações dos indivíduos com o tempo e com o espaço. Isto é, apontou os conceitos de população, de biótopo e de biomassa. Ora, se a população se define como sendo um conjunto de indivíduos, entende-se que o número dessas partes possa variar de zero ao infinito. Compreende-se, também, que se submete, como é natural, às leis todas que regem os conjuntos. Quando n for igual a zero, significa dizer que o conjunto é vazio, portanto a população foi extinta, como sucedeu com os dinossauros. E, adverte o professor, se a população humana não se cuidar, vai chegar a zero também. Conceitua biótopo como sendo o lugar conveniente, propício, a determinada população, em intervalo de tempo definido. O biólogo, então, disserta sobre a evolução do homem, mostrando que as primeiras espécies do gênero Homo foram desaparecendo, porque cederam lugar às novas, até que o Homo sapiens se constituiu em espécie definitiva. Populações substituídas, uma a uma. Assim o Homo erectus dá origem ao Homem de Neandertal e daí ao Homo sapiens. A questão é interessante, haja vista o problema das populações extintas e as questões da evolução.
 
                    Mas, nessa mesma apostila, isto é nessa mesma aula, Bezerra Coutinho chama a atenção para o fato de que o biótopo estará em equilíbrio quando acolher o máximo daquela população, a qual, em seu conjunto, forma a biomassa. A distribuição dos indivíduos na biomassa é independente da mesma, mas pode ser em forma de pirâmide, quando os integrantes mais velhos estarão no ápice e aqueles mais novos na base. Sendo, pelo geral, este segundo segmento maior que o primeiro, naturalmente. Mas, quando o conjunto passa a ter uma diferenciação, com o número de longevos ultrapassando o de jovens, a população em causa tenderá, mais facilmente, á extinção. No caso contrário, quando os jovens prevalecem, a população se reproduz intensamente e os novos podem envelhecer, mais frequentemente, em função de uma mortalidade baixa. Considera em seguida uma questão malthusiana, a matança dos inocentes, para explicar que somente os mais habilitados à vida sobrevivem, enquanto os menos aptos sucumbem. O exemplo apresentado é o do bacalhau, peixe que deposita uma quantidade enorme de ovos, da ordem de bilhões e se tudo isso viesse a eclodir, com toda certeza não ficaria sequer água no mar. Assim, os mais frágeis, os menos capazes, são devorados e desaparecem. Dessa forma, a matança dos inocentes é um fator controlador das populações e se essa interveniência for supressa, acontece um desequilíbrio. Aparece, então, ai o Bezerra Coutinho evolucionista, sobretudo quando trata dessa mortandade dos que são menos aptos à vida, a matança dos inocentes.
 
                Em 1961, o Prof. Aluizio associa-se com o padre José Nogueira Machado S.J. para publicar, como realmente aconteceu, interessante artigo sobre a ecologia de moluscos hospedeiros intermediários do Schistosoma mansoni. É interessante a parceria, porque o sacerdote católico era um respeitado matemático no Recife, considerado até por alguns como o calculista do templo de Nossa Senhora de Fátima, assertiva negada por Eduardo Monteiro, engenheiro em Pernambuco, interessado no tombamento daquela capela votiva.  É de Monteiro a explicação de que ao padre jesuíta coube a missão de desenhar os ramos de Oliva existentes no piso do templo. Mas, como exímio matemático, associou-se ao mestre Bezerra Coutinho neste trabalho de ecologia dos hospedeiros intermediários, postulando-se, então, que havia uma relação inversa entre o tamanho do diâmetro da concha e o registro de infestação. Assim, quanto maior a concha, menor a possibilidade de se encontrar infestada. Um quadro com doze registros mostra uma variação de 30 mm a 10 mm e uma infestação larvária da ordem de 0,61 a 8,34%. Os resultados encontrados ajustam-se muito bem, conforme os autores, ao segmento de hipérbole equilátera teórico.
 
                Os autores em causa referem que espécimes com pequenos diâmetros postas em laboratório, sob condições ótimas, livres do parasitismo, se desenvolveram e atingiram um diâmetro compatível com o registrado em certos ecótopos, cujas condições foram consideradas satisfatórias. Isso, por certo, traduz o dano que a espécie parasitaria produz neste hospedeiro intermediário. Os mesmos autores postulam, então, que os elementos malacológicos encontrados, mesmo com a variação de tamanho nos diâmetros observados foram considerados como sendo de uma única espécie, Australobis glabratus, hoje Biomphalaria glabrata. É de valia aludir ao fato de que o autor dessas linhas (Geraldo Pereira), anos depois que Bezerra Coutinho e o Padre Machado publicaram a pesquisa, em tudo muito interessante, estudou a localidade em torno do rio Tapado, em Olinda, o Sítio dos Quintas, acusando uma prevalência maior da espécie Biomphalaria straminea, isto é, caramujos de conchas pequenas. A pesquisa, levada a efeito com a finalidade de conclusão do curso de mestrado, não considerou esse levantamento anterior, o que foi lamentável, porque é possível que aquelas espécimes detectadas fossem representantes minúsculos da B. glabrata. Quem sabe?
 
                Parece importante fazer alusão à referência que faz Bezerra Coutinho à diminuição das populações humanas em geral, por motivos diversos, sobretudo em consequência das guerras. Isso promove, como diz o médico, uma desocupação do biótopo, permitindo que outros grupos populacionais cheguem para ocupá-lo, indivíduos circunvizinhos se aproximem, então, e façam a ocupação. Há uma importância muito grande nisso, sobretudo com relação a espécies menores, como insetos, por exemplo, ou como roedores. Um lugar habitado por uma quantidade qualquer (x) de espécimes do gênero Culex, por exemplo, quando obrigados a abandonarem o espaço, seja por morte ou afugentadas por ação de um inseticida, deixam em aberto um claro, para a ocupação posterior pela mesma espécie ou por outras espécies. No caso humano, há uma alusão na apostila digna de menção, responsável pelo incremento demográfico, o fato de que a agricultura alterou completamente o biótopo em que vive e sobrevive a criatura, haja vista a mudança dos hábitos, quando a pessoa deixou de ser apenas coletora para se empenhar no cultivo. Isso aumentou, em muito, a população humana. A Revolução Industrial também foi motivo para um incremento demográfico.
 
                Em aula seguinte – a 66ª aula – o professor passa a analisar conceitos ecológicos mais complexos e para tanto esclarece que os indivíduos na natureza existem sempre como parelhas ou como pequeno número de integrantes, nunca sozinhos, essas associações se constituem em ecossistemas, os quais, entenda-se, reúnem elementos vivos, por isso mesmo bióticos, e uma parte que não viva, isto é abióticos. Em tais ecossistemas estão os biótopos, os quais acolhem os chamados nichos ecológicos. Entre esses há sempre uma intersecção e consequentemente uma interatuação, como está no texto ou uma interação. Intersecção e interatuação que existem em diversos níveis, inclusive entre os sistemas ecológicos, o que os faz classificáveis em secundários e terciários, além das relações primárias. Em determinado ecossistema, insiste Coutinho, considerando-se três populações diferentes, com íntimas ligações, uma dessas parasitária, com necessidade de passar por um conjunto de indivíduos no qual realiza o desenvolvimento (HO) e um outro, em cuja intimidade orgânica se passa a multiplicação (HN). Observa-se, pois, que em HO à entrada de um indivíduo corresponde à saída de inúmeros indivíduos, mas em HN dá-se o contrário, as entradas parasitárias correspondem aproximadamente às saídas. Assim, o hospedeiro HN deve ser longevo e o outro, HO, não necessariamente.  
 
                Coutinho alerta para o fato de que na relação hospedeiro/parasito há três possibilidades. No primeiro caso os hospedeiros sucumbem diante do parasitismo, no segundo há uma situação de equilíbrio, na qual a doença crônica prevalece, mas coexistem hospedeiros e parasitos. E, finalmente, na última hipótese os parasitos morrem, deixando que os hospedeiros se curem. Referências a antigas epidemias que trucidaram populações inteiras, ilustram a tese que na aula foi defendida. Interessante, ainda, é que a explicação fora dada à época para um grupo de neófitos em medicina e novatos em epidemiologia, dentro de uma perspectiva das clássicas descrições a propósito do curso de uma epidemia, a qual deve começar com um crescimento lento inicialmente, depois uma aceleração e finalmente um decréscimo dos casos, até o silêncio, quando a população parasitária, na verdade invasora, desaparece. Somente depois que aparecerem novos susceptíveis é que outros brotos serão registrados.
 
                O Prof. Aluizio Bezerra Coutinho tinha a característica didática de partir do geral e se ater depois ao particular. E dessa forma fazia. Foi nessa perspectiva que tratou, novamente, da possibilidade de três populações se relacionarem mutuamente, sendo dois desses conjuntos considerados como hospedeiros e um tido como agente parasitário, portanto agressor. Duas populações hospedeiras que diferem no tocante ao comportamento frente ao elemento considerado danoso. No caso em particular, o exemplo que apresentou foi o do morcego, que vivendo em cavernas ou tocas assemelhadas, adquire comumente o vírus da raiva e com ele convive, com poucos sintomas ou absolutamente livres de padecimento. O hospedeiro em foco – o morcego – é mais interessante para o parasito, particularmente o vírus, haja vista o fato de se manter em equilíbrio o convívio entre esses elos da cadeia parasitária, garantindo a sobrevivência de ambos, sobretudo do elemento viral. Ocasionalmente o agente parasitário é transmitido ao homem e ai a coisa complica.
 
                A doença humana era tida e havida como letal, um desfecho que foi verdadeiro por muito tempo, pois apresentava uma mortalidade de cem por cento. Ultimamente, no entanto, com a utilização de drogas antivirais e com o chamado tratamento de suporte em Unidades de Terapia Intensiva, resultados animadores têm sido obtidos. No Recife, particularmente, destaque-se de logo o trabalho do jovem médico Gustavo Trindade Henriques Filho, que no Hospital Oswaldo Cruz conseguiu vencer a doença, obtendo a cura virológica, buscando a seguir a reabilitação do paciente, através de fisioterapia e de outros procedimentos similares. O doente – um rapaz de pouca idade –, em que pese ter se tornado um homem  portador de algumas limitações, cursou para a cura definitiva. Hoje, vale referir, o perfil epidemiológico da doença mudou, o cão, cujo papel foi relevante no passado, está sob controle, na ótica do epidemiológico, ou quase sob controle. Assim, o morcego passou a ter uma importância maior, transferindo a virose diretamente ao homem, como sucedeu neste caso recente.
 
                Na mesma linha de raciocínio, isto é, quando três populações, ainda, se encontram e disso pode resultar uma injúria orgânica numa dessas é outro tema a ser considerado, também. O assunto foi trazido à baila com vistas à diferença que se pode assinalar com a circunstância antes comentada. Na situação atual de três populações diversas, sendo uma parasitária e duas necessariamente hospedeiras, é que o parasito deve passar por uma dessas, quando nada ou quase nada produz em termos de desarranjo patológico, para depois agredir a outra, a qual paga o preço da doença. Preço, entretanto, que não chega, necessariamente, ao chamado êxito letal. O exemplo prático oferecido pelo professor é justamente o da malária, protozoose que usa um hospedeiro considerado intermediário, para em seguida alojar-se na criatura humana, quando ocasiona febre, frio e cefaleia, podendo chegar ao êxito letal. Mas a passagem do protozoário pelo inseto se dá necessariamente, haja vista a ocorrência de um ciclo nesse hospedeiro intermediário, alado.  
 
                Na 59ª aula, o professor trata das relações entre populações também diferentes, abordando, então, o caso da filariose, quando há, igualmente, a interveniência de um inseto, do gênero Culex, no qual se dá uma passagem necessária, para depois o parasito – um metazoário – atingir o homem. É mais um registro de três populações diversas com relações obrigatórias. Destaca Bezerra Coutinho que há um tropismo a seguir, depois que os exemplares adultos da Wuchereria Bancrofti se alojam nos gânglios linfáticos e ai acasalam – somente ai acasalam –; tropismo que se caracteriza pela circulação de microfilárias em períodos de descanso do hospedeiro, pois é mais fácil para o inseto picar quando o individuo dorme, do que na hipótese de estar em movimento ou se bulindo (sic), como enfatiza Coutinho. E com isso o ciclo novamente se fecha.
 
                Em apostila que infelizmente não traz alusão alguma à numeração da aula, como as anteriores traziam, o professor se esforçava para demonstrar o que são sistemas abertos, isto é, aqueles que admitem entradas e saídas e o que são sistemas fechados, nos quais não há esse movimento de entradas e saídas. De logo afasta a ideia de ser o corpo humano um sistema fechado, haja vista a necessidade de se admitir entradas – a nutrição – e saídas – a excreção –, mas propõe que os sistemas vivos se mantenham em condição estacionária. Nessa situação estacionária as saídas são responsáveis pelo descarte da desordem, depois que a ordem das entradas é devidamente transformada. Em aula agora numerada – aula 38ª –, Coutinho adianta que há necessidade, como seria de se esperar, da utilização de energia para que esses processos de entradas, transformações e saídas se passem e cita como exemplo patente os vegetais, os quais se utilizam da energia luminosa.
 
                A Teoria dos Sistemas é obra do biólogo alemão Ludwig von Bertalanffy que a elaborou na década de 1950. Há de se adiantar, a título de ilustração, apenas, que sistemas são definidos como: “Um todo complexo e organizado; uma reunião de coisas ou partes formando um todo unitário e complexo.”. Ou ainda sistemas podem ser definidos como: “Conjunto de partes interagentes e inter-dependentes que, conjuntamente, formam um todo unitário com determinado objetivo e efetuam determinada função.” O contrário dessa organização em que se constituem os sistemas, é, justamente, o caos. Rigorosamente considerando, os sistemas fechados podem ser considerados conceituais, raramente sendo encontrados, haja vista não trocarem matéria ou energia com o ambiente. Enquanto sistemas abertos, como se viu, permitem a movimentação de entradas e de saídas. A entropia é a medida da quantidade da desordem num sistema. Ou como diz Reinaldo de Oliveira, ex-aluno também: “Entropia é o logaritmo da desorganização de um sistema.”.
 
                Há outros assuntos – diversos assuntos – que constam das apostilas, todos dentro da mesma perspectiva de raciocínio, isto é, da razão sendo usada para facilitar o conhecimento. Temas, por exemplo, como aquele da metamorfose, sendo de se entender que toda transformação assim supõe mudanças de parâmetros. No caso em particular do exemplo que é apresentado, o girino, que vai passando à condição adulta de sapo, precisa do hormônio tireoidiano para fazer a modificação completa. A privação desse hormônio faz com que a forma intermediária se perpetue e a abundância da substancia hormonal leva a uma mudança rápida e ao aparecimento de formas adultas bem desenvolvidas. Processo similar se passa com a lagarta que vira borboleta.
A abordagem do processo de transferência da hereditariedade, considerando genes dominantes e genes recessivos, é um dos encantos em Bezerra Coutinho. Da mesma forma, a regulação da pressão arterial, quando se tem uma pressão resultante da ação da bomba e outra pressão fruto da resistência vascular. Tudo isso hoje está nas mãos de três ou quatro ou cinco pessoas que tiveram a lucidez de guardar esse material riquíssimo, todo transcrito das aulas gravadas. Aulas que trazem o pensamento do professor, mas também algumas de suas tiradas irônicas, de certa zombaria e as interveniências dos alunos, aquelas das aulas mesmo ou ainda algumas incluídas no texto durante o exercício da transcrição.  
 
                O mestre tinha, vez ou outra, mesmo, umas tiradas pitorescas, bem humoradas, como aquela em aula na qual dissertava sobre sistemas abertos e sistemas fechados. Transcrevo ipse literis o que está escrito e se supõe foi dito por ele, respondendo a um estudante: “Seu estímulo me dá uma tremenda sensação de esforço inútil, de esforço de trabalho perdido!”. O professor tinha essas coisas! Há histórias de todo tipo com o mestre; histórias que às vezes, como parece, caíram no terreno da coisa quase folclórica. Corriam narrativas de se tirar o chapéu, como se costumava dizer naqueles anos. Certa vez, tendo chegado muito cedo à Faculdade, encontrei o mestre debruçado na grande varanda do corredor: “Que faz ai, mestre?” e ele: “Observo as mudanças que se passam de tempos em tempos na natureza!”. E ainda havia o que ver no Campus, certamente. Os ecossistemas locais viviam a efervescência dos intercâmbios.   
 
                Mas, essas graças do professor circularam até na imprensa local. Em 14 de julho de 1980, o Diário de Pernambuco, na coluna “Esquina”, o jornalista Leonardo Dantas apontava uma passagem dessa coleção que o mestre acumulou. Uma narrativa de conhecimento geral e que circulava pelos corredores todos, dava conta de certo exame de vestibular, no qual o candidato de nada sabia. Diante de tanta ignorância, Coutinho pede ao bedel: “Traga-me ai um feixe de capim!” E o estudante, na hora: “Para mim um cafezinho!”. Isso passou de boca em boca e saiu dos muros acadêmicos, como se observa, para ocupar as páginas da imprensa. Havia um aluno, cujo nome me abstenho de registrar, que passou anos seguidos prestando exames finais na cadeira de Bezerra Coutinho, sem nunca obter  aprovação. Contam os que conviveram com ele, que depois de algum tempo professor e aluno apenas se olhavam, fixamente. O mestre dava baforadas de cigarro na face do discípulo rebelde, mandava que sorteasse o ponto, no que era atendido, fazia as perguntas e resposta não obtinha. Mas, finalizava o exame dizendo: “Estou satisfeito!”. E o rapaz nunca se formou. Não podia! Era um doente com características psicóticas.
 
                Na imprensa, também, Rostand Paraíso fez referência a Bezerra Coutinho, quando escreveu artigo no Jornal do Commercio, de 19 de dezembro de 1999, dizendo textualmente: “Na Faculdade de Medicina e na Escola de Engenharia, havia histórias e mais histórias - algumas realmente acontecidas, outras fictícias, criadas pela fértil imaginação da estudantada - contadas a respeito dos professores Arsênio Tavares, Aluízio Bezerra Coutinho, Oscar Coutinho, João Holmes e Luís Freire.”. O comentário aparece em artigo intitulado “Personagens do Recife”. É do autor, ainda, o adendo de que algumas das personalidades recifenses, sem aludir especificamente a Coutinho, ficaram famosas pelas peculiaridades ou pelas excentricidades. Não é o caso, exatamente, do Prof. Aluizio Bezerra Coutinho, mas não há dúvidas que esses predicados perpetuaram também o nome do mestre.
 
                O meu colega de turma e grande amigo Mozar Diniz e Silva, fez questão de me contar a sua prova oral, quando o ponto sorteado fora “Sistema ABO” e ele, segundo comentou, disse tudo o que sabia, depois de termos estudado a noite inteirinha. O mestre, então, indagou: “E o sistema JK?”. Referia-se, ao que se imagina, a Juscelino Kubitschek, Presidente da República entre 31.01.1956 a 31.01.1961. Imediatamente antes do tempo em que fomos alunos. Mozar, diante da gozação, não hesitou e levantando-se deu um fora geral no catedrático e seus assistentes, dizendo que não entrara na Faculdade para se submeter a esse tipo de graça, pelo que foi reprovado, obtendo aprovação em exame de segunda época. O meu exame também foi divertido, na medida em que tendo respondido o que sabia, e era muito, sobre o Sistema Rh, ouvi do professor o seguinte: “Meu filho! Você acaba de inventar um novo Sistema Rh”. Repeti tudo outra vez e obtive nota 8. Conta Miguel Doherty que certo aluno, quando indagado a propósito da definição de vida, sem saber responder, exatamente, decorara a explicação do professor. No ano seguinte, diante da mesma pergunta, ofereceu a resposta que ouvira. E o mestre deu-lhe nota baixa. Frente à reclamação do estudante, explicou-se: “Ah! Meu filho! De ontem para hoje a vida mudou muito!”. E vida era definida por ele como sendo: “A reprodução autocatalítica dos polímeros macromoleculares.”
 
                Há sempre, por parte dos discípulos de Bezerra Coutinho, um espaço para o gracioso em suas passagens e para a ironia fina em seu jeitão. Assim, em “Palavras para o Amanhã”, de Genário Sales, publicação que circulou em 1997, patrocinada pela Comissão de Festas da turma de médicos de 1957, dentre as diversas alusões em torno do professor, há uma especial sobre Garrincha, o jogador de futebol. Dizia Coutinho que Garrincha fora também um gênio, pois que em condições pouco prováveis estabelecia condições improváveis, contribuindo para o provável desejado. E quando Sales disse não ter entendido, justificou-se: “O senhor sabe que ele era portador de genu-valgo em uma perna e genu-varo em outra, ia à linha de fundo e dava o passe para o gol. Mas, pergunte ao ‘bode’, que lhe explicará melhor essas condições ósseas e articulares de movimento e equilíbrio.”. O “bode” era um dos colegas de turma de 1957, responsável por uma cirurgia na pessoa de sua genitora – genitora de Bezerra Coutinho. E Genário Sales chegou a comentar com Aluizio que era muita coragem dele confiar a própria mãe a um “bode”, ao que ele respondeu que não, pois que era competente o caprino e que operar uma senhora gorda como ela não era brincadeira.
 
                Amaury Pereira, ex-aluno de Bezerra e colega de turma de Genário Sales tem um repertório grande de perguntas que o professor fazia aos alunos no vestibular. Assim, durante um encontro fortuito que tivemos, depois de comentar que o ilustre mestre deixou a todos os seus alunos foi “...uma provocação de raciocínio.”, apontou pelo menos duas dessas indagações. Uma dessas: “Por que não nasce capim em baixo de uma mangueira?”. Isso provocou o aluno e o fez dissertar longamente a propósito de raios ultravioletas e outras formas mais de incidência de luz, tirando nota zero ao final. A explicação de Coutinho foi simples: “Nasce!”. Outra pergunta que não se conseguia acertar a resposta era: “O que é a testa do milho?”. Não havia quem disso soubesse e o cientista ilustre cuidava em reprovar o aluno ignorante nessas coisas do cereal. Conforme Pereira, era apenas uma película vista na semente do milho. Mas, o estudante era quase sempre acusado de não ter estudado a contento a biologia.
 
                Quem escreveu também sobre o Prof. Aluizio Bezerra Coutinho e o fez em artigo longo, lido como discurso em 6 de julho de 1989, quando dos 80 anos do mestre, em evento patrocinado pela Agência Nordeste do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq) e o Centro de Ciências Biológicas -UFPE, foi o Prof. Salomão Kelner. O texto está incluído em livro da autoria dos Kelner (Miriam e Salomão), como um capítulo à parte: “Aluizio Bezerra Coutinho aos 80 anos”. Salomão Kelner fala sobre uma “conjuntivite coincidente”, quando o jovem estudante de medicina – Bezerra Coutinho -, tendo sido atendido no consultório do oftalmologista Francisco Figueiredo com esse diagnóstico, é estimulado a esperar a presença de Aggeu Magalhães, com acometimento igual. Do encontro desses dois ícones pernambucanos nasceu o vínculo de Coutinho com a Patologia, inicialmente com a Anatomia Patológica, tendo participado, inclusive, da chamada Escola de Patologia do Recife. Salomão conta parte do concurso público no qual Bezerra Coutinho obteve o título de Professor Catedrático de Patologia Geral, substituindo Mário Ramos que se transferiu para Microbiologia. 
 
                Sobre o concurso do ilustre pernambucano para a cátedra de patologia, Kelner, detalha o que sucedeu. Vale adiantar que tais provas eram um quase teatro de exibicionismo docente, sobretudo por parte dos examinadores de fora, convidados para integrarem a banca. O candidato, então, esmerava-se em ser agradável, o que não aconteceu com Aluizio, considerando o fato de sempre ter cultivado atitudes independentes e dignas, sem usufruir vantagens à custa de agrados ou expedientes semelhantes. Dessa maneira, um dos seus examinadores indagou: “Professor Bezerra Coutinho, como é que V.S.ª explica que em sua tese haja tanta referência a galicismos?”. E ele não teve dúvidas: “Excelentíssimo Professor: tudo que aprendi em ciência foi em línguas estrangeiras, quase nada aprendi na língua falada no Brasil.”. A tese foi sobre nódulos de Gandy e Gamna e outro examinador perguntou como ele, professor há mais de 30 anos, tinha apenas 4 casos da doença, enquanto Bezerra, um jovem como era, tivera tantos. A resposta foi simples: “E eu tenho culpa?”.
 
                Sobre o mestre de que se vem tratando neste ensaio, o Prof. Eulálio Cabral Filho publicou no Diário de Pernambuco, em 22 de junho de 1994, interessante artigo, sob o título “Bezerra Coutinho e a Ciência da Vida”. O autor do texto diz, textualmente, comentando um de seus livros: “... seu livro é sempre um reencontro com o rigor do raciocínio, com a não concessão a subjetivismos gratuitos e com a defesa das Ciências Biológicas.”. Sobre ele, também, escreve a filósofa Maria do Carmo Tavares de Miranda, uma pensadora do mais elevado nível em Pernambuco, introduzindo com um Prefácio o livro do médico: “História e Filosofia das Ciências”. É a filósofa quem diz: “Tendo sabido dilatar as fronteiras entre distintos campos do saber, exerceu, magistralmente, o diálogo e o intercâmbio necessários ao estabelecimento de uma consciência cientifica, cônscia de seus limites e horizontes.”.
 
                O mesmo Eulálio Cabral Filho, em conferência que pronunciou na Academia Pernambucana de Medicina, abordando o pensamento do professor Aluizio Bezerra Coutinho, num esforço de verdadeiro resgate de suas reflexões, aponta para a proximidade entre ele e Charles Darwin, nascido cem anos antes. O cientista que descreveu a Teoria da Seleção Natural demonstrou que o cérebro do homem provinha de cérebros mais simples, enquanto Bezerra Coutinho, em linguagem diferente, mais moderna e quase matemática, demonstrava que do caos nasce a ordem, em outras palavras, dos seres menos organizados surgem seres mais organizados. Assim sendo, num cenário de natureza caótica, considerando-se o segundo principio da termodinâmica, entende-se que há uma tendência à máxima entropia, ou seja, a desordem absoluta, atuando ai sistemas anti-entrópicos, os quais tendem ao restabelecimento da ordem.
 
                Um pioneirismo do professor de quem se vem tratando, como afirma Cabral Filho, foi ter se antecipado a Jacques Manod na França, autor de “O Acaso e a Necessidade”, propondo um entendimento teórico para o ser vivo, apontando-o como algo que poderia se organizar com a mesma estrutura de um cristal aperiódico e com uma matriz reprodutiva, capaz, portanto, de se reproduzir autonomamente, que significa, insiste Cabral Filho, em crescer e se multiplicar. O entendimento de Coutinho teve origem na teoria desenvolvida pelo matemático John Von Neumann, no Simpósio Hixon, na Califórnia, segundo a qual os organismos vivos poderiam ter uma analogia ou mesmo se identificar com o modelo de autômatos autorreprodutores.
 
                O Prof. Aluizio Bezerra Coutinho, cuja obra exige ainda uma avaliação de um exato dimensionamento, no entender de Cabral Filho, foi em toda a sua vida um homem preocupado, não apenas com a criteriosa busca do conhecimento, mas sobretudo com a sua crítica. Ainda segundo o mesmo Cabral Filho se constituiu em marca do mestre a reflexão sobre as proposições científicas, sobretudo a propósito de seus fundamentos. Coutinho chegou a se manifestar sobre a possibilidade de vida fora da Terra, colocando-se em posição contrária à possibilidade, tão defendida por outros. O cientista pernambucano alegava que as exigências mínimas de complexidade para que um objeto se comporte como ser vivo é de tal ordem que parecia remota, aos olhos inquietos do estudioso, essa eventualidade. O investigador recifense, assinala José Eulálio Cabral Filho, era de tal forma abrangente que abordava as questões regionais e aquelas de cunho universais com a mesma verve e o mesmo saber. Talvez tenha sido, comenta o autor (José Eulálio), um demônio de dupla face, uma dessas admirada por olhares de apreciadores e outra vista por críticos ferrenhos.
 
                A Academia Pernambucana de Medicina, que homenageou o Prof. Aluizio Bezerra Coutinho na passagem de seu centenário, ouvindo, como já foi referido, o Prof. José Eulálio Cabral Filho, foi o mesmo sodalício que acolheu o mestre ilustre como um de seus membros, ocupando a cadeira de nº 20, cujo patrono é Guilherme Piso, médico que veio, juntamente com Georg Marckgrav, na expedição do conde João Maurício de Nassau. Cadeira, aliás, ocupada atualmente pelo médico Miguel Doherty, cirurgião infantil e professor da Faculdade de Medicina. Segundo o autor dessas linhas, em trabalho que publicou na página da Sociedade Brasileira de História da Medicina, há quem discorde da originalidade e, sobretudo, do pioneirismo atribuído a Piso, como sucedeu a Aluisio Bezerra Coutinho, em discurso que pronunciou na Academia Pernambucana de Medicina, por ocasião de sua posse: “A Propósito de Guilherme Piso”.
 
                Coutinho assegura que Piso não foi o primeiro a deixar registrado por escrito as questões da patologia e do tratamento das moléstias tropicais, mas merece o reconhecimento que tem pela sistematização com que apresentou a problemática ao mundo, criando um corpo de conhecimentos hipocráticos referentes às terras do Brasil. É de Bezerra Coutinho, também, a reflexão em torno de uma questão que perdurou por muito tempo: a da usurpação por parte de Piso dos registros de Marckgrave. Piso, defende Coutinho, era chefe do colega e com isso certamente teve recomendações a serem cumpridas e orientações a serem executadas, razão suficiente para compartilhar os achados. De mais a mais, não omitiu o nome do naturalista que morrera na África, antes de Nassau e seus companheiros regressarem à Holanda.
 
                O Prof. Miguel Doherty, em discurso que pronunciou na solenidade de sua posse como acadêmico também, fazendo a saudação ao ocupante anterior da cadeira 20, o elogio de praxe, traça um perfil biográfico do ilustre mestre Bezerra Coutinho. Mostrou que nascido em Nazaré da Mata, em 29 de março de 1909, fez os estudos fundamentais em colégios públicos do Recife e o curso secundário no Colégio Americano Batista e no Ginásio Pernambucano. Em 1925 ingressou na Faculdade de Medicina, no Rio de Janeiro. Despertou para a Patologia quando era ainda estudante, tendo sido convidado pelo Prof. Aggeu Magalhães para trabalhar com ele na cátedra, como aliás já foi aludido. Graduou-se em 1930 e já no ano seguinte foi cumprir estágio em Toronto e na Columbia University. Aos 27 anos de idade obteve por concurso a cátedra de Patologia, na qual passou a ensinar até 1979, quando se aposentou pela compulsória. Manteve-se, entretanto, como professor da pós-graduação, além de orientar teses de mestrado e de doutorado, sem esquecer a participação que sempre teve no Conselho Diretor da Fundação Joaquim Nabuco e no Seminário de Tropicologia da mesma instituição.
 
                O Professor Bezerra Coutinho deixou 54 trabalhos publicados, além de ter feito inúmeras palestras e conferências, bem como apresentado pesquisas em congressos científicos. Foi um simpatizante aguerrido da Escola do Recife, movimento surgido na Faculdade de Direito do Recife, aglutinando aqueles da geração de 1871, no qual temas da maior importância para o Brasil foram motivo de discussão e debate. Pugnavam pela valorização da mestiçagem, resultado do cruzamento das raças; a valorização do homem brasileiro e a investigação do caráter nacional, sempre em debate com correntes teóricas europeias, o positivismo, o evolucionismo e talvez o marxismo. Foram ativos nesse movimento os intelectuais Sylvio Romero, Arthur Orlando e Tobias Barreto. Naturalmente, o professor de quem se vem tratando surgiu na cena cultural bem depois, como surgiu Gilberto Freyre, ambos incluídos no pensamento da Escola pela proximidade com as ideias. Por influência da Escola do Recife, seus integrantes eram socialistas e tantas vezes agnósticos. Bezerra alistou-se no Partido Socialista, mas quando Agamenon Magalhães foi candidato ao Governo de Pernambuco, tendo o apoio de Getúlio Vargas, de quem Coutinho era opositor, como o partido entrou na base de sustentação, para usar uma expressão atual, rompeu e deixou a agremiação política.
 
                O professor Aluizio antecipou-se ao hoje do tempo e condenou a especialização excessiva, prevendo as dificuldades que se assiste atualmente entre o médico e o seu doente; dificuldades de diálogo e, sobretudo, de interação. O paciente passou a ser, apenas, um caso sob os cuidados de uma equipe de especialistas, dos quais alguns como responsáveis pelos exames complementares. Isso a um custo elevado. Condenou, ainda, a supressão do exame oral no vestibular, alegando que não se poderia avaliar a capacidade do aluno em conversar com o seu doente no doravante dos anos. Todas essas informações trazidas pela palavra bem forjada de Miguel Doherty, a quem coube acrescentar a necessidade de qualificação ética para os candidatos ao curso médico. Foi Bezerra Coutinho quem se adiantou aos dias que se vive e fez a previsão de que o especialista ficará à mercê da máquina, condenado a ser um simples alimentador de dados para a mesma máquina, à qual há de caber fazer o diagnóstico e indicar o tratamento. Será a robotização da medicina, o fim de uma ficção científica que antecipa a frieza da realidade de agora.         
 
                Por certo, essa largueza na abrangência do conhecimento de Coutinho tenha permitido a ele ser o autor de alguns dos textos fundadores da ecologia entre nós ou o autor das primeiras palavras pronunciadas na perspectiva do ambiental. Um estudioso com rara profundidade nas interveniências observadas no cotidiano de seres assim, animados. Bezerra Coutinho foi um antecipador em diversas vertentes das ciências, sobretudo nesses aspectos hoje tão em voga das inter-relações entre os animais e entre os vegetais, como também entre ambos e esses com o inanimado do mundo. Em torno de tudo isso fazia considerações teóricas e se interessava, particularmente, pela vivência prática das questões. Prova disso foi a notável pesquisa com caramujos urbanos do gênero Biomphalaria, encontrando-os infestados com formas larvárias de Schistosoma mansoni, mas em percentuais considerados altos, postulando, então, que os casos humanos vistos nas metrópoles seriam, pelo menos em tese, mais graves que aqueles detectados em zona rural, em função da carga parasitária a que estariam submetidos os doentes da cidade.
 
                A questão da Esquistossomose serviu de grande polêmica quando se discutia o tratamento da parasitose, haja vista as posições rígidas de Bezerra Coutinho sobre a não indicação de terapêutica medicamentosa, farmacológica, pelo risco de carrear para o fígado grande volume de cadáveres de vermes mortos, como aludia. O órgão seria transformado em cemitério de vermes (sic). Dessa forma, postulava o mestre, as drogas eram ótimas para matar os vermes e ótimas, também, para matar o hospedeiro, isto é, o homem doente. Isso, então, foi uma forte razão para que os médicos pernambucanos não tratassem a parasitose durante décadas seguidas, e foi motivo de discussões e debates em diversos eventos científicos, como se tem, ainda hoje, registrados em atas e anais desses encontros. A dúvida perdurou até que as novas drogas vieram com uma perspectiva farmacológica diferente. O pensamento de Bezerra Coutinho está inserido em diversos periódicos nacionais e estrangeiros, além de ter sido objeto de conferências que pronunciou e foram publicadas ou alguns livros que foram a lume.
 
                Cabral Filho cita o Bulletin of Matematical Biophysics como um dos periódicos depositário das ideias do biólogo de que se vem tratando em torno de ecossistemas; textos que o colocam em igualdade de posições com grandes mestres de biologia teórica, tais como Haldane, D’Arcy Thompson, Lotka-Volterra e Rashenvsky. Ainda Cabral Filho, no elogio que faz ao professor, numa perspectiva de ter sido ele mesmo capaz de se superar e de superar obstáculos regionais, tantas vezes inibitórios do esforço científico, diz: “É notável, sobretudo, que o tenha realizado, não em um grande centro cultural, mas no Nordeste do Brasil.”. Avalia que talvez ai esteja uma forma da pobreza local superar-se a si mesma, erguer-se com as próprias forças. Coutinho era um homem, lembra o tantas vezes citado Cabral Filho, que pautava sua vida sobre três pensamentos lapidares: “Enuma elish la nabu Shamanu”, do poema babilônico da criação, cuja tradução é: “Quando o céu no alto ainda não tinha nome”. Mais, “Sed omnia in numero et  pondere et mensura disposuisti”, traduzido por “Mas tudo foi disposto conforme numero, peso e medida (Livro da Sabedoria). E, finalmente, Entia non multiplicanda praeter necessitatem.”, em português: “Não se devem multiplicar os entes sem necessidade.”, conhecido como o Principio da Parcimônia ou Navalha de Occam.
 
                O livro do professor Bezerra Coutinho, uma coletânea de vários e diferentes artigos, começa fazendo uma abordagem biográfica, quase se pode dizer, de algumas personagens importantes para a ciência; biográfica numa ótica ampla, incluindo o pensamento desses figurantes. Um deles, Guilherme Piso, já referido neste ensaio, médico que integrou a comitiva do conde João Mauricio de Nassau, cujo exercício prático em Pernambuco venceu as fronteiras da experiência cotidiana, para preencher itens do inteiramente acadêmico, na medida em que junto com George Marcgrave publicou livros tratando das doenças vistas nos trópicos e as indicações terapêuticas de plantas selecionadas por índios habituados a esse manuseio vegetal. O autor chama atenção para a argúcia de Piso, quando estudando o maculo identificou que a bicheira cedia aos tratamentos higiênicos, demonstrando assim que um dos males do lugar – de Pernambuco – resultava da sujeira dos homens que não se limpavam, defecando a esmo no mato. Não surpreende que varejeiras e moscas, em busca de imundícies para depor ovos, aproveitassem da situação. Deve-se a Piso as primeiras indicações do jaborandi (pilocarpina) e da ipecacuanha (emetina).
 
                Mais adiante, no mesmo livro, publica interessante capítulo: “Charles Darwin e o Brasil”. É interessante notar que o cientista, depois responsável pela teoria da evolução das espécies, teve acesso ao barco, ao Beagle, em função da amizade pessoal que o seu mestre Rev. John Stevens matinha com o capitão da expedição Fitz Roy. O capitão, por ser homem da nobreza, deveria por toda a viagem ficar isolado dos demais integrantes da tripulação, mas com a presença de Darwin, de casta social elevada e seu hóspede pessoal, esse vazio pôde ser preenchido pelo quase naturalista ali presente. Na verdade, Charles Darwin, no começo da expedição nem era o naturalista oficial de bordo, mas o médico Robert Mckormick, a quem caberia o exercício da prática de Hipócrates e mais, a coleta de novos espécimes. Depois que o cirurgião ficou impedido de continuar a viagem, em consequência de um problema de saúde, é que Darwin tornou-se naturalista da expedição. Tudo o que o cientista, no começo ainda jovem e inexperiente, pôde reunir serviu de base à escrita na maturidade de três livros fundamentais ao entendimento do evolucionismo gradativista: Os Recifes de Coral, A Origem das Espécies e A Origem do Homem.
 
                O grande cientista universal era homem de caráter bem formado, de moral ilibada, forjada nos ensinamentos que tivera quanto aos direitos humanos. Por isso, desentendera-se com o capitão Fitz Roy, quando este fez elogios rasgados à escravidão, dando como exemplo de relação entre o senhor e seus cativos uma visita que fizera a certa propriedade no Rio, onde esses cativos negaram qualquer insatisfação com a vida que levavam. Darwin contestou o capitão, afirmando que uma resposta diante do senhorio de nada valia. Assim, surgiu a desavença. Depois voltaram às boas. Dez anos depois da passagem do ilustre cientista por terras nacionais, o Brasil promovia a abolição da escravatura, banindo de uma vez a chaga que maculava a sociedade. O reconhecimento das pesquisas de Charles Darwin fez com que o cientista ilustre, tão do agrado de Coutinho, fosse convidado a integrar inúmeras sociedades no mundo. Uma dessas no Recife, o Gabinete Português de Leitura, a única sociedade brasileira a reconhecer a obra darwiniana, no ano de 1879, sendo o pesquisador admitido como sócio correspondente.
 
                É importante atentar para a vinculação que faz Bezerra Coutinho entre Charles Darwin e suas descobertas ligadas à evolução das espécies e o cientista da hereditariedade: Gregório Mendel. Em realidade, a Teoria da Seleção Natural surgiu em seguida à também teoria de Lamark (Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck). Lamarck propunha que as mudanças que se passavam com os seres vivos eram decorrentes das transformações ocorridas no meio ambiente. Assim, no exemplo que apresentava da girafa e de seu pescoço, justificava que os animais de pescoços curtos iam esticando o segmento do corpo até alcançarem as árvores e as folhas postas no alto. Para Darwin não era bem assim, mas existiriam alguns indivíduos da espécie com o aludido segmento já desenvolvido e esses eram selecionados para continuarem o exercício do viver. O que parece ter faltado a Charles Darwin foi a ideia de que os caracteres hereditários não eram transmitidos pelos pais na razão de metade cada um, fazendo, por exemplo, um filho de um pai talentoso e uma mãe medíocre nascesse com uma inteligência mediana. Não!
 
                O mestre demonstra que a teoria mendeliana não foi apenas uma postulação a mais na seara da hereditariedade, mas a adoção de conceitos físicos e químicos, além da adoção, também, de um tratamento matemático plausível. Isso representou a “primeira legislação quantitativa de um fenômeno biológico, permitindo a previsão de resultados experimentais nas hibridações”. O professor motivo dessas linhas trata longamente, no livro “Da Natureza da Vida”, incluído no volume de “História e Filosofia das Ciências”, das interrelações entre o que disse Lamarck e aquilo que foi sendo comprovado na teoria de Darwin e a seguir nas ideias de Mendel. O “ambientismo” de Lamarck onde era reconhecido como tal, inibia fossem as leis de Mendel, igualmente, reconhecidas. Assim, considerava-se, por vezes, que essas determinantes da hereditariedade só valeriam para características menores, como, p