História da Neurologia em Minas Gerais

22/06/2011 23:30
HISTÓRIA  DA  NEUROLOGIA  EM  MINAS  GERAIS
 
Sebastião  Silva  Gusmão
 
 
O início da moderna medicina em Minas Gerais coincide com a fundação da cidade de Belo Horizonte, em 1898 e, mais precisamente, com a fundação da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Com a criação desta Faculdade, médicos de outros centros, especialmente do Rio de Janeiro, instalaram-se na nova capital do Estado, dando início à prática e ao ensino das diferentes especialidades médicas.  Assim, a neurologia de Minas Gerais está intrinsicamente ligada à escola neurológica do Rio de Janeiro, fundada pelo Professor Antônio Austregésilo Rodrigues Lima (1876 - 1960)  (1,2).
 
A Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, hoje  Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi  criada em 5 de março de 1911. Seu primeiro  catedrático de Clínica Médica foi Alfredo Balena, sendo também um dos seus fundadores e seu diretor de 1928 até 1949, quando faleceu. Como eminente clínico e professor,  cuidou de pacientes neurológicos e ensinou  clínica neurológica. Entre vários de seus trabalhos publicados, constam dois de Clínica Neurológica: “Epilepsia endócrina” (1924)  e “Novo processo terapêutico da choréa de Sydenham” (livro editado em 1926) (3,4,5).
No período em que a Neurologia era exercida pelos neuropsiquiatras três médicos exerceram em Belo Horizonte a Clínica Neurológica e ensinaram esta especialidade na Faculdade de Medicina:  Alvaro Ribeiro de Barros, Washington Ferreira Pires e Caio Líbano de Noronha Soares.
 
Na reunião da Congregação de 18 de janeiro de 1914 Álvaro Ribeiro de Barros foi eleito para a cadeira de Clínica Neurológica e Psiquiátrica. Doutorou-se em 1904 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Foi discípulo de Teixeira Brandão e de seu assistente Henrique Roxo. Além da Psiquiatria, e talvez mais do que  ela, a Neurologia era objeto de seu interesse. Sua tese de final de curso constitui valiosa contribuição ao estudo clínico dos reflexos cutâneos. Passou a residir em Belo Horizonte a partir de 1913. Assumiu, em 18 de janeiro de 1914, a cadeira de Clínica Neurológica e Psiquiátrica, vindo a ser   mestre consagrado por seus contemporâneos.  Designado pelo então presidente do Estado, Arthur Bernardes, orientou, a partir de 1920, as obras do Instituto de Neuro-Psiquiatria de Belo Horizonte. O hospital foi inaugurado em  1922 com o objetivo de cuidar de casos neurológicos e psiquiátricos, pois naquela época as duas especialidades ainda não se haviam separado, sendo exercidas pelos neuropsiquiatras. Foi projetado com instalações e programa considerados excelentes na época. Álvaro de Barros seria o diretor, mas faleceu poucos dias antes de assumir (30 de agôsto de 1922). A denominação do hospital foi mudada, em 1924, para Instituto Raul Soares, em homenagem ao Presidente do Estado falecido naquele ano. Álvaro de Barros foi autêntico intelectual, cuja curta vida se consumiu tôda entre livros.  Possuia a mais vasta e valiosa biblioteca que, em seu tempo, existia em Belo Horizonte. Logo após sua morte, o governo a adquiriu para o Instituto Raul Soares (3,6).  Conforme Pedro Salles (4,5), Alvaro de Barros é dos mais ilustres representantes de nossa medicina, ultrapassando sua projeção ao âmbito puramente profissional para refletir-se nos domínios da cultura filosófica, do humanismo e da literatura. Era homem de vasta inteligência, sólida cultura e extenso saber médico, dedicando-se com especial afeto à Neurologia.
 
Washington Ferreira Pires (1892 - 1970) diplomou-se pela  Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1914. Foi interno dos Professores  Antônio Austregésilo e Miguel Couto.  A partir de 1922,  regeu a cadeira de Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte e, em 1926, após  aprovação em concurso,   se empossa na Cátedra. Dedicou-se também à política, tendo sido  Deputado Estadual (1923-1930) e  Federal  (1930-1937) e   Ministro da Educação e Saúde Pública (1932 - 1934). Publicou vários trabalhos no campo da Neurologia (3).
 
 Caio Líbano de Noronha Soares foi Assistente de Clínica Neurológica de 1928 a 1931. Em 1932,  com o afastamento de Washington Pires para  assumir o cargo de Ministro da Educação e Saúde, assume a regência da Cátedra até 1934. Homem de invulgar inteligência e grande capacidade de trabalho, exerceu diferentes atividades médicas. Foi das maiores expressões da Neuropsiquiatria de Minas Gerais, tendo publicado vários trabalhos originais. Na avaliação de José Geraldo Albernaz, Caio Líbano era o maior conhecedor da  Neurologia entre os neuropsiquiatras (3).
 
O início da neurocirurgia como especialidade em Minas Gerais ocorreu nas décadas de 40 e 50 e foi obra de  três pioneiros: Moacyr Bernardes, Francisco José Rocha  e José Geraldo Albernaz. Estes pioneiros exerciam simultaneamente a neurologia e a neurocirurgia da mesma forma que seus antecessores praticavam ao mesmo tempo a psiquiatria e a neurologia.
 
Moacyr Bernardes nasceu em Dores do Indaiá-MG, a 19 de julho de 1904. Formou-se em medicina pela antiga Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1931. Em 1937 seguiu para a Europa, a fim de fazer um curso de especialização em neurocirurgia, tendo permanecido por um ano em Berlim, no Serviço do Professor Wilhelm Tönnis. Em Berlim, dirigiu, durante algum tempo, o Departamento de Neurorradiologia, em substituição ao chefe do Serviço, convocado para um estágio militar no período que antecedeu  à Segunda Guerra Mundial. Completado o curso em Berlim, seguiu para Paris, onde estagiou no Serviço do Professor Marcel David. Regressando ao Brasil, exerceu o cargo de assistente da Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, cujo titular, o Professor Washington Ferreira Pires,  possibilitou-lhe  instalar  pequeno Serviço de Neurocirurgia. Começou a operar no Instituto Raul Soares, onde realizou inúmeras leucotomias, operações muito utilizadas na época. Passou  a usar a angiografia cerebral, sendo um dos primeiros a utilizá-la no Brasil, bem como a ventriculografia. Em 1946, fez  viagem de estudos à Suécia, onde frequentou o Serviço de Neurocirurgia do Professor Herbert Olivecrona, um dos  expoentes da neurocirurgia mundial,  que lhe proporcionou excelente acolhida em sua clínica no Seraphimer Lazzaret, de Estocolmo.  Regressando a Belo Horizonte, foi contratado para o cargo de neurocirurgião do Hospital de Pronto Socorro. Todo o serviço de assistência aos portadores de traumatismos cranioencefálicos, cuja frequência àquela época já era considerável, foi montado inteiramente às suas expensas, equipado com moderno instrumental de sua propriedade, adquirido em Estocolmo e em Paris. Foi auxiliado em sua prática cirúrgica por Francisco José Rocha, José Gilberto de Souza e Guilherme Cabral Filho, todos futuros chefes de serviços e criadores de escolas neurocirúrgicas. Voltou inúmeras vezes à Europa, sobretudo à Alemanha, Suécia e França, onde contava com sólidas amizades, freqüentando sempre os serviços de maior projeção e participando de   congressos. Foi membro fundador da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia. Faleceu em 22 de dezembro de 1973 (7) .
 
Francisco José Rocha nasceu em Sete Lagoas-MG, a primeiro de novembro de 1920. Formou-se  pela Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, em 1944. Ainda como estudante fez sua formação em cirurgia geral com os professores Rivadávia de Gusmão e Sálvio Nunes. Logo após a graduação, dirige-se para a cidade de João Monlevade, onde exerce a clínica e a cirurgia geral. Retorna a Belo Horizonte no início de 1947 e, desta data até  1950, trabalha como  Assistente da Clínica Cirúrgica da Santa Casa de Belo Horizonte e de Técnica Operatória da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, sob a orientação do Professor Rivadávia de Gusmão. Aí completa sua formação em cirurgia geral, acompanha as intervenções sobre o sistema nervoso (rizotomia retrogasseriana, alcoolização do nervo trigêmeo e laminectomia) realizadas por Rivadávia de Gusmão, e começa a se interessar pela neurocirurgia. A  decisão de se dedicar à cirurgia neurológica ocorreu em janeiro de 1948, quando o Dr. Geraldo Roëdel, neurologista, diagnosticou um abscesso cerebral em  paciente internado na Santa Casa e lhe solicitou   o tratamento cirúrgico. Francisco Rocha submeteu o paciente à angiografia cerebral, realizando o diagnóstico topográfico da lesão  que foi operada com sucesso. Nos dois anos seguintes continua a operar casos neurológicos e, em 1949, por orientação do Professor Rivadávia de Gusmão, visita o Serviço do Professor Portugal, no Rio de Janeiro. Em  1950, já decidido a dedicar-se exclusivamente à cirurgia neurológica,  por meio de uma bolsa obtida pelo provedor da Santa Casa de Belo Horizonte, José Maria Alkmin, dirige-se a Estocolmo, juntamente com o Dr. Moacyr Bernardes. Permanece por dez meses no Serviço de Olivecrona, na época considerado a autoridade máxima na especialidade. Retorna a Belo Horizonte no início de 1951, organizando neste mesmo ano, no Hospital Vera Cruz, o primeiro serviço  de neurocirurgia  de Minas Gerais . Em 1952 iniciou o treinamento de neurocirurgiões, sendo seus primeiros discípulos  José  Gilberto de Souza e José de Araújo Barros, que posteriormente se tornaram chefes de serviços e de escolas  neurocirurgicas de Minas Gerais, sendo, até hoje, professores da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Defendeu, em 1957, sua tese de doutoramento sobre “Tratamentos dos abscessos cerebrais”, na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais. Foi membro fundador da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia. Publicou vários  trabalhos, sendo  que em um deles relata o primeiro caso de esquistossomose medular operado no Brasil19. Francisco Rocha é considerado o grande mestre da neurocirurgia mineira por ter sido o primeiro a organizar um  serviço de neurocirurgia e a fundar uma escola neurocirúrgica neste Estado. Trabalhou  intensamente de 1951 a 1988, formando vários discípulos, que exercem a especialidade em diferentes cidades do país. Faleceu em 31 de janeiro de 1998 (7).
 
Até a década de 50 a Neurologia foi exercida em Belo Horizonte pelos antigos neuropsiquiatras e pelos primeiros neurocirurgiões, Moacyr Bernardes e Francisco José Rocha.  José Geraldo Albernaz e Gilberto Belisário Campos introduziram em nosso meio a moderna Neurologia.
 
José  Geraldo  Albernaz concluiu o curso médico em 1946 na Faculdade de Medicina da UFMG. Em 1948 se dirigiu aos EUA para obter seu preparo como especialista. De 1948 a 1953 cumpriu formação em  Neurologia e Neurocirurgia na Universidade de Illinois, em Chicago, EUA, sob a orientação de Paul Bucy e Percival Bailey. Em 1953 iniciou o exercício da Neurologia e da Neurocirurgia em Belo Horizonte, no Hospital Felício Rocho. Simultaneamente aceitou para treinamento médicos recém-formados e estudantes de medicina interessados em Neurologia. Em 1962 iniciou programas oficiais de residência no Hospital Felício Rocho para formação de especialistas em Neurologia e Neurocirurgia. Em 1955 apresentou a tese “Considerações sobre Tumores das Meninges”, sendo aprovado nos exames de habilitação à docência livre de Clínica Neurológica da Faculdade de Medicina  da UFMG.  Em  1962 torna-se Professor Catedrático de Clínica Neurológica após aprovação em concurso no qual defendeu a tese “Estudo Experimental sobre a Inibição da Atividade do Sistema Eferente Gama por Estimulação da Substância Negra. Sua relação com o Parkinsonismo”. Organiza o Serviço de Neurologia e Neurocirurgia e inicia a Residência Médica em Neurocirurgia no Hospital das Clínicas da UFMG. Em 1968 transferiu-se para os Estados Unidos passando a fazer parte do Medical College of Ohio em Toledo, Ohio, EUA.  Além das três teses já mencionadas, publicou mais de quarenta artigos científicos em revistas médicas nacionais e internacionais. Na década de 50 o Professor Albernaz foi o pioneiro da moderna neurologia mineira, até então exercida pelos neuropsiquiatras e, juntamente com Moacyr Bernardes e Francisco Rocha, da neurocirurgia, cujos procedimentos eram, então, alçada da cirurgia geral (3,7).
 
Gilberto Belisário  Campos, após diplomar-se pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1958, iniciou sua formação em Neurologia e Neurocirurgia como assistente voluntário e médico estagiário da Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da UFMG, sob orientação do Professor José Geraldo Albernaz. No segundo semestre de 1959 passou a bolsista na Universidade de Wisconsin, EUA. Nesta Universidade teve formação em Ciências Neurológicas Básicas sob a orientação de C. Woolsey, em Neurologia, sob a orientação de F. Forster e, em Neurocirurgia, sob a orientação de M. Javid. Juntamente com C. Woolsey e W. I. Welker, realizou então vários trabalhos de pesquisa, hoje clássicos, relacionados ao estudo comparativo da organização das áreas sensoriais e motoras (mapeamento) por métodos eletrofisiológicos e anatômicos entre várias espécies animais. Em setembro de 1963 foi aprovado no concurso do «American Board of Neurology and Psychiatry» Retornou ao Brasil no final de 1963, iniciando atividades docentes no Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da UFMG. Em 1964 realizou, juntamente com José Geraldo Albernaz, então professor catedrático, a organização do Serviço de Neurologia e Neurocirurgia. Em 1968, com a transferência do Professor Albernaz para os Estados Unidos, passa a dirigir o Departamento de Psiquiatria e Neurologia e os  Serviços de Neurologia e Neurocirurgia. No período de setembro de 1970 a maio de 1971 foi professor pesquisador do Laboratório de Neurologia Comparada do Departamento de Biofísica da Universidade do Estado de Michigan - USA, sob a chefia do Professor J. I. Johnson Jr., onde trabalhou em projetos de estudos de cérebros de marsupiais.
 
 Gilberto Belisário Campos iniciou em nosso meio a pesquisa neurofisiológica experimental comparada e a eletroneuromiografia. Publicou vários trabalhos de pesquisa básica na área de Neurofisiologia e de Clínica Neurológica em periódicos nacionais e estrangeiros. É autor, juntamente com Sebastião Gusmão, do livro : «Exame Neurológico - Bases Anátomo-Funcionais». Em 1974 defendeu  tese de Livre-Docência «Estudo longitudinal da ocorrência da ataxia-telangiectasia e persistência de forame parietal alargado em uma família» e em 1981 foi aprovado em concurso para Professor Titular do Departamento de Psiquiatria e Neurologia.  Foi responsável pela formação de vários neurologistas e neurocirurgiões e presidente da Academia Brasileira de Neurologia (biênio 1984 - 1986). Aposentou-se em 1991 e em 1997 foi eleito Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (3).
 
 
REFERÊNCIAS
 
1. Austregésilo A. Clínica Neurológica. Rio de Janeiro, Francisco Alves & Cia, 1917.
2. Ribeiro L. Medicina no Brasil. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1940.
3. Corrêa EJ, Gusmão SNS. 85 Anos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. Coopmed Editora Médica, 1997.
4. Salles  P. História da Medicina no Brasil. Belo Horizonte. Ed. G. Holman, 1971.
5. Salles  P. Notas sobre a História da Medicina em Belo Horizonte. Belo Horizonte.   Edições  Cuatiara LTDA, 1997.
6. Libano C. Prefácio. in Moretzsohn  J A - História da Psiquiatria Mineira. Belo Horizonte; Coopmed Editora, 1989; pg. 7-8.
7. Gusmao SS, Souza JG. História da neurocirurgia em Minas Gerais. Arq Bras Neurocir 16 : 167 – 172, 1997.