Baeta Vianna, José

22/06/2011 13:57

Dr. JOSÉ BAETA VIANNA

 

No momento em que se celebra o centenário de nascimento do Professor José Baeta Vianna, a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, os discípulos que conviveram mais de perto com o inolvidável mestre e o Centro da Memória da Medicina de Minas Gerais julgaram por bem render merecida homenagem à sua memória, pelos relevantes serviços prestados ao ensino e ao País. 
Decidiram os promotores da homenagem que, como parte das comemorações, se registrasse, em palestras ou publicações, para ciência da mocidade estudiosa, o perfil de tão extraordinária figura, de acordo com o testemunho dos que desfrutaram de seu convívio. 
Esta a razão de meu depoimento simples, mas dentro da linha do que pude sentir, viver e guardar.
Muitos dos que tiveram o privilégio do mesmo ambiente de esudo e trabalho já se recolheram ao silência. Precedendo-os, partiu o amado mestre. 
Alguém disse que todo homem bem dotado tem, no decorrer da existência, três missões a cumprir: plantar uma árvore, escrever um livro, gerar um filho. Lógico ou fantasioso tal pensamento, certo é que o Prof. Baeta Vianna, em sua passagem pela vida, superou de muito tal proposição. 
Além das árvores, plantou idéias - idéias impregnadas de civismo e fé na imensa potencialidade de nosso País, idéias repassadas, no entanto, de justo inconformismo com a realidade nacional e com a impassibilidade dos que têm qualquer parcela de responsabilidade na busca de melhores dias para o nosso povo.  
Nesse sentido, sua pregação constante, se fazia em circunstâncias as mais diversas: salas de aula, reuniões científicas, congressos, orações de paraninfo (e foram muitas), acontecimentos sociais, conversas informais.  
Mais do que escrever livros, criou uma biblioteca - modelo de biblioteca médica-, que hoje guarda o seu nome. Muito limitada à época de sua formação, em 1927, em virtude da escassez de recursos materiais, converteu-se aos poucos, pelo esforço, descortino e tenacidade de seu criador, em rica fonte de conhecimentos, com livros e especialmente revistas procedentes dos mais diversos países, perfazendo em dezembro próximo passado, 2.437 exemplares. 
Cabe notar que, com a fundação do ICB na Pampulha, grande acervo dos periódicos relacionados com as ciências básicas, foram transferidos para aquele órgão. 
Criava-se, desse modo, outra mentalidde acadêmica, abrindo novos horizontes para os futuros médicos.  
É para lastimar que a permanente escassez de recursos não venha permitindo a necessária renovação dos liros de texto, com sensível prejuízo para os consultantes. 
Não tendo filhos, incorporou o Prof. Baeta Vianna à sua família científico-cultural apreciável grupo de ex-alunos que, embora fossem companheiros temporários de estudo e de trabalho, tornaram-se fiéis seguidores dos ideais que lhe nortearam a rica existência. 
No magistério, encarnou o modelo do professor universitário e, fato singular, inaugurou em nossa Faculdade o tempo integral voluntário. 
Seu estágio em universidades norte-americanas notadamente na famosa Harvard, tornou-o fervoroso adepto dos métodos de trabalho e estudos ali adotados, aos quais procurou adequar o ensino em nossa Faculdade.  
Professor íntegro, culto e atualizado, enriquecia as preleções de conceitos que tinham como alvo preparar, não apenas médicos conscientes de sua responsabilidade profissional, mas, também, cidadãos voltados para o bem-estar da sociedade. 
No desempenho do programa curricular, que ocupava três manhãs semanais, a seqüência dos trabalhos era sempre a mesma: aula teórica, sem horário para terminar, em virtude de seu entusiasmo pelo ensino da matéria, seguida de trabalhos práticos no laboratório, situado no andar térreo do velho edifício da Faculdade, o chamado porão, onde os assistentes e monitores já aguardavam com todo o material prepardo para o exercício do dia. 
Juntamente com os auxiliares, o Professor seguia de perto o desempenho de cada aluno e, não raro, executava ele próprio uma ou outra técnica para que o estudante aprendesse a executá-la corretamente. (uma explicação aos mais jovens: vivíamos uma época anterior à criação do Instituto de Ciências Biológicas e à integração das cadeiras do ciclo básico).  
Terminado o aprendizado da cadeira, vários alunos, entusiasmados com o ambiente de trabalho, voltavam a freqüentar o serviço durante todo o tempo disponível, quase sempre abrangendo, também, parte das noites e dos domingos e feriados. 
Para esses futuros estagiários, havia rigoroso treinamento prévio para o apuro técnico necessário à análise química. 
Vencida a fase preparatória, o Professor sugeria ao estagiário um assunto para o estudo, escolhido segundo as circunstâncias presente. 
Feita a escolha, eram fornecidas as condições necessárias à pesquisa, inclusive as principais referências bibliográficas relacionadas com o tema.  
Desse modo, sob a orientação segura do Professor, foi realizado alentado número de trabalhos, posteriormente publicados em revistas médicas, e de teses de doutoramento ou de concursos à docência na Faculdade.  
De programa de estudos, constavam reuniões semanais, realizadas à tarde ou à noite, quando alguns estagiários expunham o andamento de seus trabalhos, ressaltando as dúvidas ou dificuldades surgidas. A seguir, outros componentes do grupo resumiam artigos de revistas ou jornais médicos relacionados com as respectivas áreas de trabalho, em geral previamente selecionados pelo Professor que, ao final, fazia esclarecedoras considerações sobre os assuntos estudados.  
Cabe mencionar, por ter ficado de modo duradouro na lembrança de quantos estagiaram na Bioquímica, o tradicional café da tarde - café com pão e manteiga, custeado pelo professor e preparado pelo "seu" Antônio (Sr. Antônio Lisboa, funcionário da cadeira), que o servia em pequeno compartimento anexo ao serviço, onde todos se "acomodavam" de pé. É que a pausa nos trabalhos ensejava ao Professor fazer lúcidas considerações sobre os mais variados assuntos, como pesquisa, educação, saúde, política e literatura e que consituíam inesquíveis lições.  
Criou o Professor Baeta Vianna uma linhagem de bioquímicos e pesquisadores de áreas afins, muitos ainda em atividade na nossa Faculdade e em outros institutos de pesquisa, os quais vêm transmitindo às novas gerações a chama da devoção à ciência que herdaram do pranteado mestre. Tal contribuição no campo da Bioquímica constitui, sem dúvida, seu maior legado à ciência e ao Brasil. 
Grupo relativamente menor de estagiários, no entanto, optou pelo exercício da clínica em seus diferentes setores. Com a sólida formação científica a alicerçar-lhes a vocação, em geral obtiveram o merecido êxito. Coube-me falar em nome dessa plêiade de colegas. outros o fariam melhor, mas não pude impedir a honrosa indicação.
Dos que participaram do grupo de trabalho da Química Fisiológica, continuam em atividade de pesquisa ou de ensino e pesquisa Carlos Ribeiro Diniz, Wilson Teixeira Beraldo, José de Moura Gonçalves, Eurico Alvarenga Figueiredo, Ênio Cardillo Vieira, Giovanni Gazzinelli, Marcos dos Mares Guia, Armando Neves, José Ferreira Fernandes, Olga Bohomoltz Henriques, Sebastião Baeta Henriques, Dagger Moreira da Rocha e Sales Gesuíno. 
Na área clínica continuam em atividade J. Romeu Cançado, J. B. Greco, Ari Alves de Carvalho, Adilvar Antônio de Oliveira, Daniel Thales Ribeiro e aquele que vos fala.
Afastaram-se de qualquer função médica Bolívar de Souza Lima, Roberto Ribeiro de Oliveira Resende, Odir Castelo Borges e Fernando Alzamora. 
São falecidos: A. Oliveira Lima, Aulo Pintos Viegas, Bernardino Ladeira, GEraldo Siffer de paula e Silva, João Batista Veiga Salles, José Benjamin Soares, José Leal Prado de Carvalho, Maria Tófani, Oromar Moreira, Oswaldo Coelho, Salomão Corrêa da Silva e Thales Gonzaga de Barros. 
À memória dos nossos colegas, nossa respeitosa homenagem. 
É possível que, por omissão involuntária, nomes de outros colegas tenham deixado de figurar na presente relação. 
A criação, na Faculdade, do Laboratório de Pesquisas Clínicas, hoje Patologia Clínica, foi mais uma importante rrealização que o ensino deve ao Prof. Baeta Vianna. Verificando ele a dificulade dos recém-formados em utilizar os recuros laboratoriais na clínica, pela pouca experiência na indicação dos mesmos e na interpretação de seus resultados, fundou aquele órgão, anexo à cadeira de Química Fisiológica, destinado ao melhor preparo dos estudantes de 4a.a 6a. série, em regime de estágio facultativo. A iniciativa obteve ampla aceitação e os resultados foram plenamente compensadores. 
Divididos em turmas de dez, os alunos freqüentavam sucessivamente as seções de urina, sangue, gastroenterologia, microscopia e sorologia, quando recebiam ensinamentos teóricos e aprenderam a fazer os exames e a interpretar seus resultados. 
Atualmente, o ensino da patologia clínica, enriquecido pela tecnologia mais avançada, adiquiriu novas dimensões, mas o espírito que inspirou a sua criação continua o mesmo: o melhor preparo médico para o melhor exercício da Medicina. 
Em virtude de seu exacerbado escrúpulo científico, publicou o Prof. Baeta Vianna poucos trabalhos, os quais, no entanto, tiveram ampla repercussão nos meios médicos-científicos. Cumpre-nos citar Contribuição à microquímica dos lipóides e novo processo de microdosagem da colesterina, com aplicação à Biologia (tese do concurso, 1922) e Estudo do Bócio Endêmico em Minas Gerais (1931), trabalho sempre atual, de investigação sobre a etiologia do bócio endêmico em nosso Estado. A pesquisa foi feita em dois municípios de Minas Gerais - Betim e Ouro Branco - onde o bócio era muito comum. 
O trabalho, de grande alcance médico-social, exigiu cuidados especiais, como a elaboração de microbureta apropriada para a sensível dosagem do iodo, feita no sangue e na urina dos portadores de bócio, e na água e nas verduras de uso mais corrente naqueles municípios. 
Com esse estudo pioneiro, o Prof. Baeta Vianna provou que também em nosso meio a carência de iodo é a principal causa do bócio endêmico, conclusão que facilitou sua profilaxia, já adotada em outros países.  
Numa época de escassos recursos materiais, introduziu importantes modificações em vários métodos de análise, tornando-os aplicáveis em nosso meio, como nos casos anteriomente citados.  
Cabe incluir entre suas publicações, de elevado sentido educativo, as oito orações de paraninfo, proferidas nas cerimônias de colaçào de grau dos formandos da Faculdade de Medicina da Unversidade Federal de Minas Gerais, quando, mercê de suas excepcionais qualidades de inteligência, caráter, patriotismo e cultura, aliadas a aguçado espírito crítico, fazia, em linguagem simples, mas castiça, profunda análise da realidade nacional.  
Tais orações tinham o sentido de amplas clareiras, pelas quais se divisava o verdadeiro Brasil: o Brasil dos contrastes; o Brasil de imensas riquezas naturais, de um povo ordeiro e bom, ao lado de um Brasil doente, Brasil das endemias, do analfabetismo, da miséria, da injustiça social e dos maus governantes, mas, ao mesmo tempo, um Brasil do futuro, sadio e desenvolvido, com o qual morreu sonhando.  
O trabalho realizado pelo Prof. Baeta Vianna na Universidade Federal de Minas Gerais repercutiu em todo o Brasil, justificando sua convocação, em 1938, para Reitor da então Universidade do Distrito Federal, lugar no qual, entretanto, permaneceu por apenas alguns meses, não tendo conseguido pôr em prática seu plano de trabalho.  
Dentre muitos outros cargos de destaque, ocupou, no período de 1961 a 1963, a presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, passando, porteriormente, a figurar na galeria dos Presidentes de Honra da mesma.  
Foi fundador da Associação dos Ex-Alunos da Faculdade de Medicina da UFMG da qual se tornou patrono.  
Mas a atuação do Prof. Baeta Vianna não se restringiu às áreas do ensino e da pesquisa e à criação de uma escola de bioquímico e ciências correlatas. Suas realizações no campo da saúde e da medicina social marcaram de maneira dignificante sua vida. De modo sucinto cumpre-nos lembrar as que mais projetaram sua imagem no reconhecimento público.  
Concretizando aspiração do primeiro Reitor da Universidade de Minas Gerais, Prof. Francisco Mendes Pimentel, fundou, o Prof. Baeta Vianna, em 1932, a Assistência aos Universitários, mais tarde (1936) transformada em Fundação, com a designação Fundação Universitária Mendes Pimentel, cujo objetivo inicial mais importante era fornecer ao estudante pobre auxílio material sob a forma de matrícula, como empréstimo a ser pago três anos após a formatura. Os benefícios incluíam, ainda, assitência médica, odontológica e jurídica gratuitas, empenhando-se a entidade em criar condições de subsistência dos alunos mais carentes, por meio de emprego ou ocupação remunerada.  
É do Prof. Baeta Vianna outra realização de grande vulto: a construção do Hospital da Baleia, da Fundação Benjamim Guimarães, entidade de amparo à criança tuberculosa ou portadora das complicações e seqüelas da doença.  
Numa época em que a tuberculose, muito freqüente em nosso meio, tinha como principal recurso terapêutico, ao lado do repouso, a alimentação farta, via de regra ausente na mesa do pobre, o contágio das crianças era muito comum e, uma vez confimado o diagnóstico, quase sempre estava lavrada a sentença de morte.  
O Prof. Baeta Vianna, inconformado com tal sitação, procurou obstinadamente meios de resolvê-la ou minorar-lhe os efeitos.  
Para tanto recorreu, como fizera anteriormente, quando fundou a Assistência Universitária Mendes Pimentel, ao espírito esclarecido do grande filantropo Benjamin Ferreira Guimarães, o qual, ciente do alcance do empreendimento e conhecedor da integridade e capacidade realizadora do amigo, se dispôs a colaborar com doações que incluíam grande área de terreno, onde seria edificado todo o conjunto hospitalar. 
Foram muitas as dificuldades de vencer, para que se tornasse realidade aquele quase utópico sonho, mas finalmente, as crianças doentes tiveram o seu hospital.  
Hoje a situação está bastante mudada. A tuberculose é doença facilmente curável, sua profilaxia tornou-se mais eficaz e as complicações menos freqüentes. Oxalá possa a Instituição continuar cumprindo a contendo o seu destino.  
Não era político o Prof. Baeta Vianna, mas não pôde recusar o chamado do Governador Mílton Campos para dar sua colaboração, ocupando o lugar de Secretário da Saúde do Estado de Minas Gerais. Sua atuação no cargo pautou pela mesma tônica de fidelidade aos princípios de austeridade, trabalho e constante preocupação com a saúde e o bem-estar da sociedade, particularmente daquela parcela menos favorecida de recursos.  
Na Secretaria pôde, finalmente, pôr em prática algumas idéias pelas quais sempre se bateu.  
Não era clínico, mas era dotado de aguda percepção dos problemas médicos, tendo a guiar seu claro raciocínio a vasta cultura médica e geral que possuía. Algumas de suas concepções, bastante avançadas para a época, eram, por isto mesmo, aceitas com reserva, até que o tempo viesse provar o acerto das mesmas.  
Amante da música erudita, tinha em Wagner seu compositor predileto. Em atenção a essa preferência, já em 1981, ao ser inaugurada a "Sala Baeta Vianna" do Centro da Memória da Medicina de Minas Gerais, foram ouvidos trechos daquele compositor, como a "Abertura dos Mestres Cantores" e o "Coro dos Peregrinos de Tannhauser". Hoje a homenagem se repete. 
Muito mais deve ser dito sobre o inolvidável mestre, pois, pelo que ensinou e realizou, honrou como poucos este País.

 

*João Galizzi: Professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Artigo publicado na Revista Médica de Minas Gerais v. 4 no. 3 jul./set. 1994, por ocasião do centenário de Baeta Vianna e disponível no site: https://www.medicina.ufmg.br/biblio/baeta.htm