1808: um pernambucano na Corte

22/06/2011 23:14
1808: um pernambucano na Corte

                                                  Mário V. Guimarães

 
            Os estudiosos brasileiros têm curiosamente acompanhado ultimamente,através do noticiário da imprensa, uma certa movimentação de alguns setores intelectuais e econômicos, acerca da importância do ano 2008 como celebração do segundo centenário da vinda de D.JoãoVI, Príncipe-Regente de Portugal,para o Brasil e que aqui chegou em janeiro de 1808, aportando em Salvador(Bahia)por acidentes de percurso, pois o seu destino era o Rio de Janeiro, para onde seguiu grande parte de sua frota, inclusive com o resto de sua família. Todos fugitivos das tropas de Junot, general de Napoleão, que ocupou Lisbôa dia seguinte a sua fuga. O motivo é que esse fato está sofrendo pelos observadores, uma nova interpretação, desta vez positiva e favorável, pela qual daí nasceu uma nova época para o Brasil, após 308 anos de desprezo e parasitismo comercial dos colonizadores lusos, pelos quais vivíamos trancafiados e isolados do resto do mundo, inclusive entre as próprias regiões da Colônia.Principal efeito da vinda da Família Real, para os historiadores, políticos e economistas: a abertura dos portos brasileiros ao comercio internacional, por inspiração inglesa, numa hábil manobra comercial e irrecusável ,dada a proteção da marinha britânica á fuga.
 
     No bojo de tudo isso porém, outro fato de maior significado aconteceu para todos nós brasileiros, médicos e educadores. Trata-se da providencial vinda na comitiva real, do Cirurgião–mor do Reino, o médico José Corrêa Picanço, colaborador e amigo pessoal do real personagem. Quem era e como atingiu essa posição?
 
      José Corrêa Picanço era pernambucano, nascido na então Vila de Goyana ,em 10 de novembro de 1745, sendo filho do cirurgião-barbeiro Francisco Corrêa Picanço e de D. Joana do Rosário. De família humilde, fez o curso primário na terra natal e afeiçoou-se desde cedo ao labor paterno. Com a transferencia de seu pai para Recife, os seus pendores aprofundaram-se, quando interessou-se mais pela Cirurgia,arte de acesso manual.A sua dedicação e o seu empenho despertaram a atenção e chegaram ao conhecimento do Conde de Vila Flor (Antonio Francisco de Paulo Manoel de Souza e Menezes), governador da Provincia, que o nomeou em 1766 ,Cirurgião do Corpo Avulso e Oficiais de Ordenança de Entrados e Reformados.Não satisfez-se porém o jovem goianense, pois aspirava formar-se em Medicina e Cirurgía, o que só conseguiria indo para a metrópole lisboeta, o que finalmente conseguiu graças ao seu talento, desempenho e persistência.
 
    Chegando em Lisboa, matriculou-se na Escola Cirúrgica do Hospital São José, estudando no seu curso regular e consegue o título de Licenciado em Cirurgia. Não o satisfez ainda, por não ser reconhecido como médico pelos seus colegas de trabalho, sentimento reforçado pelas parcas condições que a medicina portuguesa oferecia e decidiu ir para a França, onde conquistou afinal o tão almejado título de Doutor em Medicina, em 1789, incluindo defesa de tese.No que se refere a sua temporada francesa, há divergências entre seus biógrafos, enquanto uns referem-se a Paris, outros citam Montpellier, ainda hoje grande centro universitário no sul da França, que dizem não dever nada a Paris. Fala em favor de Paris ,o fato dele ter se dado profissionalmente muito bem , onde chegou mesmo a residir na cidade e ter consultório, além de contrair núpcias com Catarina, filha do Prof. Sebastier Brochet (ou Brochot, para outros), que fora seu mentor ao conquistar o título de ‘Officier de Santé”. O que consta na realidade é ,que por duas vezes Corrêa Picanço recorreu a escolas francesas para aperfeiçoamentos. Teve porém que voltar á Portugal, sendo nomeado pelo Marquês de Pombal, para a cadeira de Anatomia, Operações Cirúrgicas e Obstetrícia da Universidade de Coimbra e membro da Real Academia de Ciências de Lisboa. Exerceu ao todo em Portugal, o ensino de Anatomia, sua grande paixão, por 18 anos, ou seja de 03 de outubro de 1772 ao jubileu em 28 de junho de 1790. Seu grande mérito foi revolucionar o ensino da disciplina, usando cadáveres humanos, inclusive enfrentando corajosamente velhos preconceitos ditados e vigentes ainda como resquícios da Santa Inquisição.
 
       Voltou então para Lisboa. Consagrado pelo seu currículo e pelo prestígio que adquirira na sua permanência em Coimbra, de larga repercussão na capital, foi logo convocado para o comando médico do Reino, sendo nomeado Cirurgião-mor de Sua Majestade, Primeiro Cirurgião da Real Câmara, Deputado-membro da Real Junta do Protomedicato, uma entidade equivalente ao nosso atual Conselho Federal de Medicina, criada pela Rainha D. Maria I em 1787, com a diferença que não zelava muito pela qualificação dos seus membros, o que resultou na sua abolição por D. João VI, logo que chegou ao Brasil, transferindo toda a sua autoridade para Corrêa Picanço e o Físico-mor. Estava, pois o brasileiro vivendo a fase áurea de sua carreira junto a Corte lusa e com seu poder extensivo a todos os Estados, Províncias e Domínios Ultramarinos portugueses.
 
            Em 1807, porém, a política externa de Portugal entra em choque com a França e Napoleão determinou a invasão do pais, resultando na ocupação de Lisboa pelas tropas do general Junot (ironicamente casado com uma nobre portuguesa,a Duquesa de Abrantes) , exatamente no dia seguinte a fuga da Família Real e que aportou acidentalmente  na Bahia em 22 de janeiro de 1808, por problemas de navegação, pois o destino era o Rio de Janeiro, como se sabe.Essa casualidade hoje, já é discutível.
 
          Componente fundamental e indiscutível da comitiva real, Corrêa Picanço deparou-se logo com o quadro tenebroso das condições sanitárias da Colônia. A situação da saúde era absurda, absolutamente precária e algo tinha que ser feito e logo.
 
O historiador pernambucano Oliveira Lima, que traçou um dos mais corretos perfis da época, conta baseado em depoimento do inglês Jonh Luccock, que viveu 10anos no Brasil a partir de 1808 no Rio de Janeiro, “que as operações mais fáceis costumavam ser praticadas pelos barbeiros sangradores, e para as mais difíceis, recorria-se a indivíduos mais presunçosos, porém no geral, igualmente ignorantes de anatomia e patologia”. Para serem autorizados a fazê-las, submetiam-se a um exame elementar (bastava saber ler e escrever) perante uma Junta que ignorava solenemente a Medicina. Como vemos, reflexos do Protomedicato já citado e comentado.
 
       Começava ai a grande luta do pernambucano e o primeiro passo teria que ser o estabelecimento do ensino médico, o que conseguiu junto ao monarca em 18 de fevereiro de 1808, após árdua e incontestável argumentação junto ao mesmo. Com a Carta Régia, criou-se uma Escola de Cirurgia no Hospital Real Militar de Salvador e tomadas de imediato as providencias para a instalação das aulas no antigo Colégio dos Jesuítas, que era sede do Hospital Militar e situado na localidade conhecida até hoje como Terreiro de Jesus, conforme autorizava o Ministro D. Fernando de Portugal e Castro. É importante que se reproduza na íntegra o documento que é considerado pelos historiadores a “certidão de nascimento” do ensino médico no Brasil. Ei-lo:
 
Deus guarde a V. Excia.
  Bahia, 18 de fevereiro de 1808.
  Ao Ilustre Excel. Sr. Conde da Ponte.
 
  O Príncipe Regente Nosso Senhor, assumindo a proposta que lhe fez o Dr. José Corrêa Picanço, Cirurgião-mor do Reino e do seu Conselho, sobre a necessidade que havia de uma Escola de Cirurgia no Hospital Real desta cidade, para instrução dos que se destinam ao exercício desta Arte, tem cometido ao sobretudo Cirurgião-mor a escolha dos Professores, que não só ensinem a Cirurgia propriamente dita, mas a Anatomia como base essencial dela e a Arte Obstétrica, tão útil como necessária, o que participo a V. Excia. Por ordem do mesmo Senhor, para que assim o tenha entendido e contribua para que tudo que for promover este importante Estabelecimento.
 
     D. Fernando José de Portugal Castro, Ministro do Senhor Príncipe Regente”.    
 
    Detalhista e exigente, o goianense Corrêa Picanço de logo nomeou os dois primeiros professores, que foram, Manoel José Estrela para a cadeira de Cirurgia Especulativa e Prática e José Soares de Castro para a de Anatomia e Operações Cirúrgicas. A de Arte Obstétrica não foi de logo preenchida. Estabeleceu pessoalmente normas de admissão para os postulantes, inclusive exigindo conhecimentos da língua francesa, o bom relacionamento com os professores e entre os mesmos, mobiliário adequado nos locais para aulas teóricas e práticas rigoroso cumprimento dos seus horários, programações e freqüências.Para o curso de Cirurgia, exigiu que fosse seguida a orientação da Escola francesa do Prof. Mons. De la Fay, com duração de 4 anos. Até as taxas escolares foram por ele calculadas e estabelecidas.
 
      Chegou ao Rio de Janeiro em março, na mudança da Corte para lá. O quadro se repete, as circunstâncias e o quadro sanitário são os mesmos. Novamente convencido pelo pernambucano, D. João cria em 5 de novembro a Escola Cirúrgica, também no Hospital Militar, pois eram os melhores apropriados para o empreendimento, sendo adotados os mesmos critérios já impostos em Salvador.
 
      Estavam assim estabelecidos os dois pólos geradores para o futuro desenvolvimento do ensino médico no Brasil e que perpetuariam o nome de José Corrêa Picanço, independente de qualquer outro fato.
 
       Até agora temos nos referido a figura empreendendora e profícua do nosso biografado, mas precisamos vê-lo também como cidadão. Claro que quem fez o que ele fez, a ainda mais no ambiente em que circulava, ele era para sociedade o que hoje se conceitua como uma autêntica celebridade. Além do título de primeiro Barão de Goiana, com que foi agraciado em 1820, era portador de inúmeras outras distinções profissionais como “Officier de la Santé” e Doutor em Medicina pela Faculdade de Paris, Professor de Medicina da Universidade de Coimbra (de Anatomia, Operações Cirúrgica e Arte Obstétrica, membro da Academia Real de Ciências de Lisboa,  Primeiro Cirurgião da Real Câmara, Cirurgião do Reino, Deputado à Junta Real do Protomedicato, Fidalgo da Casa Real, do Conselho de Sua Majestade, Cavaleiro e Comendador da Ordem de Cristo, Cavaleiro Honorário da Torre e Espada, Nobre do Império (o único médico pernambucano a sê-lo) e Barão também em Portugal.
 
     Pela sua ligação, afinidades e confiabilidade com a Casa Real, participou ainda em Lisboa, da Junta Médica que determinou o afastamento da Rainha D. Maria I, do trono português, por problemas psiquiátricos, assim como no Rio de Janeiro partejou a primeira Imperatriz do Brasil, D. Maria Carolina Leopoldina, quando do nascimento da Princesa Maria da Glória, futura  Rainha Maria II de Portugal.
 
      Como trabalho científico deixou em 1812 a publicação “Ensaios sobre os perigos das sepulturas dentro das cidades e nos seus contornos”, com 115 páginas. Estava trabalhando em uma segunda edição, corrigida e aumentada quando faleceu. Segundo o “Dicionário” de Sebastião Galvão, há referencias a outros trabalhos inéditos.
 
      Como homem de família, casou-se em Paris, ainda em sua fase de aperfeiçoamento, com Catharina Brochot (ou Brochet, para outros), filha de um Mestre da medicina francesa, o Prof. Sabatier Brochot, um seu orientador, chegando a residir e clinicar naquela cidade (como já frizamos). O casal teve três filhos que vieram a ser o Marechal de Campo José Corrêa Picanço, o Desembargador Antonio Corrêa Picanço e a Sra. Isabel Brochot Picanço da Costa.
 
      Dado importantíssimo de sua biografia é o fato de ser considerado o Patrono da Obstetrícia Brasileira, não só por ter sempre realçado a fundamentalidade dessa matéria na instituição dos cursos médicos, como por ter praticado pela primeira vez a  cesariana no pais, em 1817, no Hospital Militar do Recife, em uma paciente negra, escrava e que sobreviveu. Discute-se o episódio, mas justifica-se, se em 1817 ou 1823. É mais provável ter sido em 1817, pois em 1823 ele já consolidara-se no Rio de Janeiro. As circunstancias da época não permitiam uma divulgação nacional, dada a total falta de comunicações entre as diversas regiões da Colônia, e não era só pela ausência de um serviço de integração nacional. É que esse tipo de serviço, por razões práticas, pois não interessava a Coroa, a fim de evitar articulações políticas entre as mesmas, como revoltas ou movimentos libertários, aliás já em desenvolvimento em algumas províncias, inclusive Pernambuco e por ironia em Goiana, terra de Picanço.As diversas regiões do país viviam praticamente isoladas umas das outras, obedecendo a um decreto de 1733 que disciplinava o assunto.
 
     Esse esclarecimento fez-se necessário porque, publicação recente de consagrada pesquisadora carioca da Fiocruz, atribui a primeira cesariana no Brasil ter sido “oficialmente” (o grifo é nosso) realizada no Rio de Janeiro em 1855, pelo médico da Casa Imperial e diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Luiz da Cunha Feijó, Visconde de Santa Isabel. Há quem atribua a ocorrência também a Francisco Furquim Werneck de Almeida, de Vassouras, RJ, este porém nascido em 29/9/1846, o que a nosso ver o tira de cena. A pesquisadora acima referida é Fabiola Rhoden.
 
        Além de ser considerado o Patrono da Obstetrícia Nacional, Corrêa Picanço foi aclamado “Patriarca da Medicina Brasileira”, título concedido por aclamação no III Congresso Brasileiro de História da Medicina, realizado em abril/1958, nas comemorações do 150º aniversário do Ensino Médico no Brasil, em conjunto com o I Congresso Panamericano de História da Medicina, realizado no Rio de Janeiro.
 
        Essa nossa grande figura faleceu em 20 de outubro de 1823 no Rio de Janeiro. Merecia mais atenção dos nossos governantes e estudiosos.
 
 
Outros autores consultados:    Leduar de Assis Rocha
                                                         José Geraldo Távora
                                                         Mário Santiago (Analecto goianense).